segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Amamos o quê?


Azulejo no Parque das Merendas - Sintra


Quem fez as palavras, homens, gerações e gerações, tinha diante de si um conjunto de objectos que podia ostentar. «Vês, isto é uma pedra: peee-draaa, repete ou levas com ela!» Fácil.

Temos muitas palavras para objectos, mas há outras coisas que não podemos ostentar: não podemos pegar no medo e dizer aos outros, "isto" é o medo. Se quiséssemos poderíamos categorizar as pedras por tamanho, peso, feitio, origem, composição, cor, etc. Mas como é que podemos catalogar sensações e emoções que todos sentem em si mas que não conseguimos observar nos outros. Eu nem sequer sei se aquilo a que chamo "amarelo" provoca em mim a mesma sensação do que em todos os outros, quanto mais em relação ao gosto da cerveja, ou ao pôr-do-sol.

Por isso, a ideia de que podemos falar de coisas como o "amor" pode parecer uma quimera. Como é que se descreve o que é o amor? Terá conseguido Camões?

"Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?"

Explicar o que é o amor a quem não sabe o que ele é com explicações como "é ferida que dói e não se sente" só se for para adensar o mistério. Mas estas frases tocam o ponto de quem já o sentiu. Falam de coisas e comportamentos visíveis (feridas, fogo, prisão, vencedores, lealdade) para abordar o invisível.

São poucas e pequenas as palavras para tão grandes temas. A verdade é que não conseguimos falar sobre as coisas que mais influenciam as nossas vidas. Talvez possamos partilhar o amor com quem nos quer bem, talvez possamos partilhar a música, a beleza do pôr-do-sol. Mão-na-mão ou enlaçados num abraço descobrimo-nos e descobrimos muitas coisas. Coisas das quais não podemos falar, nem a nós próprios, pois não há palavras inventadas para elas, e como explicar a nós próprios aquilo de que nem conseguimos falar?

Somos, em relação a temas invisíveis como o amor e a beleza, como aquele cão que quer dizer «o osso está ali, viras a esquina, andas dez metros e depois vês uma árvore à direita, o osso está enterrado atrás da árvore». Ele quer dizer, mas não consegue pois a sua espécie não inventou maneiras de falar sobre objectos que não estejam presentes.

Mesmo com todas essas dificuldades às vezes a vontade é tanta que apetece ladrar. E certamente que já houve animais em todo o mundo que ladraram, ganiram, miaram, grasnaram e fizeram muitas outras coisas sabendo de antemão que não iriam ser entendidos. Porque ainda não tinham sido inventadas as palavras que lhes permitissem comunicar o que sabiam, "o meu amor morreu, grita o lobo, lançando uivos de dor».

Talvez tenha acontecido isso com Camões, que, impedido de dizer o que sabia ser o amor, inventou estas metáforas, estas imagens. Pelo menos quem lá esteve saberá do que fala. Quem viu a noiva do lobo morrer sabe porque uiva o lobo viúvo, os outros não.

O que amamos nós afinal: felicidade, verdade, liberdade, poder? Então e tu, minha Princesa, que inefável há que eu Amo em ti? O que me faz ver a Beleza nos teus cabelos, o que me faz desejar a tua face como quem deseja a Aurora, o que me faz sentir que és mais linda do que um planeta cintilando à luz de um Sol?

E o que vejo numa gota de água que a faz parecer tão bela?

Será possuir e ser possuído por Princesas Amorosas e Românticas ou a beleza nua do orvalho que contém a resposta para "o que amamos nós?"?

Talvez tudo isso, talvez nada disso...

Vou continuar a uivar, por nada conseguir compreender, por ser sábio e louco, por saber que nada sei, por continuar a viver neste ponto de interrogação que é a vida, no meio das galáxias que, como grãos de areia, povoam o universo que nos deu origem...

Quem somos, o que é o mundo, para onde vamos, de onde viemos, o que podemos esperar?

Serei máquina ou fonte de causalidade, e o amor, será mero artifício para a propagação dos genes? Serão os místicos doentes mentais e toda a parafernália de teorias éticas um mero embuste do gene egoísta para assegurar a sua reprodução?

Uma coisa é certa, o universo que podemos contemplar estende-se a perder de vista e tudo o que fizemos para compreender os seus limites só nos revelou os nossos. O mundo não parece ter fim, quer olhemos para o microscópico ou macroscópico somos invadidos pela sensação de que não sabemos nada, que não compreendemos nada, do que verdadeiramente se passa.

Poderemos então falar do Amor se não sabemos sequer como funciona o nosso dedo do pé?

Caeiro, que tentava não ser pessoa, disse: "quem ama nunca sabe o que ama, nem por que ama, nem o que é amar..." Eu amo, não sei bem o quê, nem porquê, mas sei o que é o amor: é, entre outras coisas "querer estar preso por vontade"...

Amor e medo misturados que, indistintos, formam a prisão da minha alma...