segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Ele é pintor, é meu amigo!

É tão giro ouvir «ele é pintor, é meu amigo!" É giro sobretudo quando não é um pintor famoso, mas simplesmente o canalizador / estucador / pintor / homem dos sete ofícios, que até vive mal, mas que, veja-se bem, é nosso amigo!

Também é giro ter alguém famoso ou importante que é amigo. Talvez eleve o nosso estatuto social, o nosso "prestígio", perante alguns dos nossos "amigos", que também, pela mesma ordem de razões, verão o seu elevado assim. Quantos amigos do Futre não haverá assim, e da rainha de Inglaterra?

Mas esses são apenas amigos de conveniência. Largariam o Futre e a Rainha como a peste no momento em que se descobrisse que gostavam de coisas proibidas, em que passassem de admirados a desprezados. Na verdade devem ser muito poucas as pessoas a gostar verdadeiramente do Futrre ou da Rainha de Inglaterra, o que é gostável neles é a fama que eles nos dão. Até é mais fácil gostar deles se os conhecermos pouco,não as subtilezas, nem aquilo que pode ficar mal, só mesmo o que interessa: «sim, é mesmo o Futre que estás a pensar! não é um qualquer, desconhecido!»

Para os amigos verdadeiros, o que os outros pensam, o que eles nos podem dar, vale bem pouco. Vale unicamente a beleza que vemos neles, no seu intelecto, no seu coração e, para quem vê as coisas assim, na sua alma.

Por isso, ser famoso ou ter uma certa arte que nos dê jeito pouco interessa para o amigo que me interessa ter e ser. Seja ele pintor, escritor ou canalizador, político ou comentador desportivo, futebolista ou financeiro, médico ou advogado, mestre espiritual ou apresentador famoso, ator, músico, alpinista... tirem-me tudo isso da frente e mostrem-me só o coração e o que tentou e tenta fazer da sua vida... será meu amigo se souber o que pagamos por cada batida do coração, será meu irmão se conhecer a beleza dos perfumes de uma flor, das ondas do mar que despenham contra a costa ou de qualquer outra parte do todo...

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O menino apaixonado pelo Sol

O menino gostava de se espraiar na água do mar, de barriga para cima boiava, quentinho e regalado, maravilhado com tudo o que o rodeava. Via, na sua mente, uma imagem da sua mente, com as suas altas paredes fechadas e, lá fora, para lá dos sentidos, os biliões de biliões de moléculas de todo o tipo que o rodeavam, que o constituam, que o alimentavam, que ele respirava, que ele nunca conseguiria imaginar ou visualizar. Os sentidos constrangiam-no, a mente mentia-lhe, mas ele sabia, que apesar de nunca vir a ver com nitidez o mundo fora de si, Ele existia, muito para além das suas minúsculas capacidades de representação.

Vivia apaixonado por esse mundo invisível, intocável, impossível de chegar, mesmo que pela imaginação, a não ser de forma muito superficial.

Naquele momento o menino pensava nas ondas, e nas milhares de pequenas ondas que cada onda contém, e nas outras ainda mais pequenas, e assim sucessivamente. Cada uma desempenhando o seu papel, tal como ele, minúscula parcela do universo, quase invisível à escala do planeta, num planeta quase invisível à escala do sistema solar, um sistema quase invisível à escala da Galáxia, uma Galáxia quase invisível no mar de Galáxias... e ele, menino, um gigante com triliões de células, biliões de biliões de proteínas, um mundo dentro de um mundo... Tudo isto invisível em pormenor, mas visível nos seus traços gerais... Como uma amada de quem se sabe pouco mais que o nome, mas se pressente, por trás dos lábios a paixão, por trás do corpo a beleza, por traz das vestes o abraço, a visão, a dança...

Assim também era o mundo, mais pressentido que sentido, mais intuído que visto, mas, mesmo assim, muito belo, na verdade, o tudo que contém todas as coisas belas, possíveis, reais, imaginárias e inimaginadas... Todas as músicas, todas as obras de arte, todas possibilidades, todos os estados de alma, todos os estados físicos... e assim se perdia o menino no mar, no meio de tudo, tentando a tudo chegar, mas chegando apenas à milésima parte da milésima parte da...

O menino tinha uma doença incurável desde o dia em que tinha nascido... naquele mundo estranho chamavam-lhe tempo e identidade. Era um nome estranho para uma doença, sobretudo porque também era a cura de muitos outros males. Mas a doença como que lhe fazia sair o sangue pelos pulsos abertos. No meio do mar sentia, cheirava e saboreava o seu próprio sangue, que saia lentamente das suas veias. O seu corpo lutava incessantemente para se manter vivo... Mas ele saberia que um dia essa luta chegaria ao fim... e que só poderia haver um vencedor... o tempo vence sempre à identidade...

Perguntava-se se alguém mais veria toda aquela enorme beleza, a maravilha que era o mundo... Ele tinha feito diversos quadros, muito mal desenhados e que, de resto, ninguém via... Mas eram a sua esperança, o seu legado, para que outros pudessem olhar uma gaivota, uma árvore, uma rocha banhada pelo mar, como quem olha para o próprio Deus, ou para o corpo nu e húmido de uma mulher amada.

O menino olhou para o Sol uma vez mais, olharia para tudo enquanto tivesse olhar...

E quando deixasse de ter... um sorriso aflorou-se-lhe aos lábios, tudo aquilo continuaria lá... o sol, as aves, o mar, as estrelas e infindáveis planetas cheios de infindáveis meninos olhando as estrelas... A sua vida tinha pouco importância, como uma gota de água de uma onda que rebenta junto à praia.

Estava sozinho, no mar, apesar de sentir quase todas as coisas e pessoas como suas irmãs e irmãos... E sorria, enquanto o sangue lhe saia lentamente das veias... O mundo era maravilhoso!!