sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Amor e aporias

"Não posso viver sem ti" é uma expressão por vezes tomada como sintoma de amor. A mim faz-me confusão usar apenas uma palavra para significar coisas tão diferentes, em parte opostas. Então prefiro, pelo menos para mim, diferenciar: a dependência e o desejo de um lado, o amor do outro. O amor, nesta aceção restrita, é também um desejo, mas não de ter nem de receber. Por isso talvez o devêssemos chamar antes de vontade (criar / fazer): um querer o bem de outro(s).

Nesse sentido em que prefiro usar as palavras, "não posso viver sem ti" é uma expressão de desejo, mas nunca apenas de amor embora também possa haver amor associado ao desejo. Também os crimes passionais, não poderiam ser chamados de crimes de amor, a não ser que fosse, por exemplo, de roubar comida para dar a alguém que se ama. Mas aqueles em que se mata por ciúme são o oposto de querer o bem ao outro. (Queremos, isso sim, o nosso bem e por isso estamos dispostos a matar quem nos traiu.)

A paixão é uma coisa gira, arrasta-nos como uma montanha russa. Ora estamos no topo, temos tudo, ora esse tudo nos foge, nos desilude, nos maltrata. É uma grande aventura que eu pessoalmente acho gira de ver nos outros, muito gira mesmo mas que a mim não me fascina viver na pele pois vejo de perto as grilhetas que me põe na alma, a ilusão de que está vestida e todo a comicidade de querer "ter" o outro (como se isso fosse possível) e de o querer fazer à imagem do que preciso que ele seja para que ele seja o meu ideal (como se fosse possível que o outro fosse algo que não liberdade, como eu).

Sendo então a paixão algo que gosto de ver nos filmes e nos olhos e vidas dos outros, resta-me então o amor para brincar. À partida pode não aparecer grande aventura "querer o bem" de alguém. Parece uma coisa estilo Madre Teresa de Calcutá ou algo assim extraordinariamente chato.

Mas não é!

Amar (neste texto amar significa querer o bem de alguém) leva a tudo menos à monotonia.

Há pessoal que nos tenta convencer que é fácil amar, pega-se numas roupas e comida e distribui-se e tá feito o amor. Mas essas pessoas, duvido que sejam boas amantes. O amor nunca se fica pelo superficial, mesmo quando começa simples é uma chave para a complexidade, para mil e uma dúvidas, para mil e um caminhos, para aporias, mistérios, mergulha-nos num constante "não saber o que fazer", e, portanto, numa constante aprendizagem. Num certo sentido, as aventuras do amor são muito mais deliciosas e diversas que as das paixão. São mais envolventes, não é só os sentidos, não é só: eu perdi isto, eu ganhei aquilo, eu queria aquela... É tão mais do que eu e a minha história e os meus ganhos... é o mundo todo que se abre, tudo o que eu amo... para ser um bom amante é preciso compreender o outro, e é preciso, mais ainda, libertar a beleza, a liberdade, o amante que há em nós, e deixá-lo correr, voar, brilhar... DANÇAR!!!

Coisas simples: eu amo alguém que se droga, que tem um vício que lhe tira a vida, a alegria, a liberdade... quero o bem dessa pessoa. O que fazer?

Ou: eu amo duas pessoas que se combatem. Quero o bem de ambas mas o bem de uma pode ser procurar o mal da outra, por exemplo, dominá-la.

Ou: eu amo alguém que me quer fazer mal.

Ou: eu amo alguém que não me compreende e vê em tudo o que faço coisas que eu não pus lá....

Isto leva a viagens. Eu posso amar uma serpente... deixá-la-ei comer-me para que ela viva? Matá-la-ei porque a minha vida é mais importante do que a dela? Ah! Matai a serpente dirá a sabedoria humana, matai tudo o que não somos em nome do homem, esse ser cuja sobrevivência é mais importante do que de todas as outras espécies em conjunto. Mas podemos imaginar que estamos numa guerra. Saber quem começou a guerra importa? Sabemos sequer quem começou? Quem é bom, quem é mau? Ou nada disso importa mas apenas o facto de sermos "nós" contra eles. Matamos então o amor a "eles" e matamo-los a eles. Mas porque serão eles menos merecedores de amor se até estão dispostos a morrer pela sua pátria, pelos seus amigos e família? Esse que ergue a sua arma contra mim e a aponta e aperta o gatilho fá-lo em nome das suas amizades, da grandeza da sua coragem, da sua pátria. Devo então deixá-lo ganhar? O que tenho eu a mais do que ele, em que valho mais?

E, se por acaso, fosse eu a ganhar o combate, mas apenas o ferisse sem o matar. Deveria então socorrê-lo e tratá-lo e guardar-lhe as cartas para a família? Servir-lhe de confidente talvez?

E até que ponto devemos amar? Quem devemos amar? Deveremos amar quando nos matam a família? Nas guerras civis, entre homicídios, raptos, violações...  haverá lugar para o amor ao inimigo? Fará sentido querer o bem a quem violou as nossas irmãs? E como amar um tal violador senão dando-lhe o que ele merece, o que ele ganhou com o suor das suas ações? Não será aqui o perdão imerecido uma falta de amor? Será então a guerra, cheia de ódio e violência, uma espécie de orgia onde os amantes se ensinam o que é o respeito, o que é a virtude, onde se relembram mutuamente, através das suas lanças, como beijos, da sacralidade que violaram antes como cegos?

Amantes... amantes severos, amantes cegos, amantes terroristas bombistas, fanáticos, cegos, cegos, cegos... mas amantes mesmo assim...


Ou então simplesmente temerosos, ou então simplesmente obedientes, ou então simplesmente sem opção.

Quem sou eu  e quem és tu?

O amor, para mim, não é só dádiva, "querer o bem do outro", é também ver o divino (sagrado) no outro.

Tu fazes-me e eu visto-te, de palavras, de sonhos... de desejos e objetivos... os dois fazemos um só, duas asas do mesmo pássaro.

Mas vê! Não és a única asa com quem posso voar...

E dizem-nos
afirmam-nos
gritam-nos aos ouvidos:
incessantemente
cruelmente
sem qualquer piedade
que,
em nome da piedade
e em nome do amor,

só podes Amar Um!

só podes Amar Um único Ser!

a tua "cara metade"
a tua "alma gémea"
a tua esposa, o teu esposo.

E tudo o que vá para lá disso
é ultrage
é infâmia
é degredo
é mentira
é TRAIÇÃO!

Gritam-me isso ao ouvido. Mas eu sei, sei de uma forma tão clara que não preciso de me lembrar e por isso não posso esquecer, que é impossível amar alguém totalmente sem amar tudo o que esse alguém é, e cada alguém traz pedacinhos de todo o mundo dentro de si, reflexos. Tu és pó de estrelas, és eletromagnetismo condensado, és liquido e vapor, és alma e sangue, és história, potencialidade, és presente, és vibração imprevisível, és pensamento, és ação e movimento, és sede e fome, és abundância... tu és tudo e nada, és mortal e és divino e infernal... e se te amo amo também as estrelas em que foste feito, o planeta que te dá origem, a comida de que te alimentas, as fezes que distribuis como se não fossem tuas, as unhas que crescem sem que saibas como, a tua sede de ser melhor, a tua ignorância, que escondes como podes e te faz viver tantas aventuras e dá tanto peso à tua vida, o teu sexo, misterioso, ponte para muitos mundos, ponte para ti, para o teu prazer, para sermos, pelo menos num momento, um; fundidos, encalorados, rodopiantes, sem fronteiras nem cisões, apenas um... amo tudo isso e muito mais. Mas quantos reflexos de ti têm as outras pessoas? Quantos outros alguéns são também filhos das estrelas? Quantos outros alguém têm também sonhos e pesadelos? Posso amar-te a ti sem amar os outros? O outro pó das estrelas, os outros sexos, também caminhos para a interioridade e intimidade? Tu és tu, tu és eu, tu és eles também. E eu também sou eles. Somos todos muito parecidos. Não! Não posso amar-te sem amar tudo... é impossível amar-te, que és mulher, sem amar todas as mulheres. É impossível amar-te, tu que amas, sem amar todos os que amam. E se amo a tua vontade de sonhar, a tua liberdade, tenho de amar todos os que têm vontade de sonhar, e são livres.

Este discurso não encaixa... em lado nenhum da nossa sociedade. E no entanto é a nossa sociedade, arrisco a dizê-lo, que não encaixa no mundo. Queremos ser especiais, únicos... mas o mundo é muito mais belo que isso. Em vez de ser quase tudo lixo e tu e eu sermos aquelas coisas belas que surgiram no meio da podridão... é quase tudo luz, luz condensada em matéria, tecida em padrões infinitamente complexos e que, numa história inimaginavelmente longa, nos trouxe à existência por modos e motivos (até agora) insondáveis, mas que tem pelo menos um resultado claro: o de que a existência se pode tocar a si própria neste local que cada um de nós é: pelas sensações, emoções e pensamentos...

Eu não encaixo nesta nossa civilização tão desencaixada da realidade. Queremos ser especiais, mas pelas razões erradas: por sermos diferentes. Mas nós somos especiais precisamente pelo contrário, por estarmos integrados nesta história interminável e insondável. Por sermos dignos de amor tal como o grão de areia a gota de água momentânea na onda que faz splash na praia ou a estrela que explode continuamente para o exterior por biliões de anos...

Neste mundo não faz sentido amar apenas uma pessoa, ou apenas todas as pessoas. O que faz sentido é ver o mar em ti. É ver o céu em ti, ver a infinita beleza em ti, mesmo quando ergues armas contra mim. Mesmo quando não me compreendes, mesmo quando me tentas destruir. E eu não sou importante, a minha vida não é importante, a minha felicidade não é importante, o meu caminho não é importante, a minha realização não é importante.

O que é importante é que a miríade de seres, de viagens, de aventuras, de amores e desamores, de paixões, de mistérios, de ligações... que tudo isso e muito mais, que TUDO continue a existir, a florir, a amar e a odiar e a desejar e a iludir-se para lá de qualquer esperança. É preciso que o MAR continue, é preciso que o mar continue...

E, todos os indícios apontam para isso, o Cosmos vai continuar, com a sua infinita beleza, com todas as suas músicas, cores e sabores, muito depois de eu morrer e de todos os meus amores e paixões morrerem ou se transmutarem em novas histórias e personagens... e esse é, de todos os pensamentos que já tive, o que me deixa mais feliz.

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