sexta-feira, 15 de maio de 2015

Viver

Não somos formigas, ou melhor, as formigas entre nós nunca irão ler este post ou partilhar esta ideia. A sua mente de insecto não capta as nuances de um homo sapiens armado com um computador e 100 mil anos de cultura.

Uma formiga pode andar em cima de um arranha-céus, mas não compreende o que é o arranha-céus, porque é que ele existe, quem o criou, etc. A formiga compreende pouco ou nada do contexto em que a vive, que a produziu e que lhe dá os impulsos e a forma de ver o mundo que fazem dela o que ela é.

Eu não sou uma formiga, mas as minhas limitações para compreender o mundo à minha volta são do mesmo tipo. Tal como a formiga em cima do arranha-céus também eu, em cima do planeta, tenho apenas indícios do que o constitui, da sua história e nada sei sobre se o universo tem um propósito e, caso tenha, qual ele é e qual o meu papel nele, se algum.

Tal como a formiga vivo numa comunidade com objetivos bem definidos e muitas certezas. Todos sabemos o que é para fazer (arranjar comida / dinheiro, seguir a fileira, ser um bom elemento, etc), todos sabemos as terríveis coisas que nos acontecem se nos desviarmos da norma e, neste nosso mundo cheio de certezas, não há dúvidas nem razão para ter dúvidas.

No entanto o formigueiro, a civilização humana, com todas as suas certezas, o conforto e o desafio que proporcionam, não passam de um pormenor no cosmos que nos rodeia. Podemos funcionar melhor ou pior nesse pequeno contexto que nos diz claramente o que fazer, mas isso não nos dá a magia do mundo mais vasto que nos rodeia.

Será que uma formiga consegue sentir a magia da imensidão do espaço à sua volta, o mistério de poder sentir os cheiros das suas companheiras e as vontades e medos que a animam? Fora da lufa-lufa do dia-a-dia surge por vezes a consciência de existir. Provavelmente nunca saberemos se e até que ponto uma formiga pode sentir esse assombro por existir.

É certo que muitos seres humanos parecem nunca a ter sentido mas a questão central aqui é saber como lidar com tanta ignorância. Sem dúvida que podemos ser todos muito certinhos "o cidadão perfeito", "o surfista perfeito", "o anárquico perfeito", "o pai perfeito", etc... e isso significa basicamente que conseguimos cumprir todas as exigências que se punham a esse personagem. Parabéns portanto! Infelizmente para essa persona, nós vivemos numa realidade muito vasta. As conquistas dessa persona, tal como as conquistas da pequena formiga, têm um significado real muito diferente, fora do pequeno mundo, do pequeno palco, de que nos rodeámos, que nos protege de toda essa complexidade, e onde recebemos constantemente as palmas e os apupos. Que, se calhar, valem bem pouco.

Penso que há uma solução para este problema: continuarmos a estudar afincadamente o universo que nos rodeia e a passar o que descobrirmos, as nossas hipóteses e metodologias, às gerações seguintes... assim, imagino que daqui a uns milhões de anos, estejamos muito mais perto de compreender quem somos e o mundo que nos rodeia, tal como nós, capazes de ler este texto, estamos mais perto do que a amável formiguinha.

Claro que esta solução é a longo prazo, para uma espécie que provavelmente já nem será humana e terá uma forma de viver tão diferente que nem será imaginável para nós humanos. Portanto, se eu quiser uma resposta para, digamos, os próximos cinco minutos: como lidar com toda esta incerteza?

Bem, em primeiro lugar é preciso aceitar a incerteza: não sei por quanto tempo a minha vida vai durar, quais as consequências a longo prazo das minhas ações, qual a correção das minhas ideias, nem sequer a correção dos meus ideais ou as minhas reais motivações e a sua origem. Nem sequer a origem e correção do meu próprio pensamento conheço bem.

Aceite isto é possível encarar a vida de infinitas maneiras. Já experimentei algumas e aquela com que me dei melhor até agora é esta:

Não negar aquilo que não se compreende. Isso inclui pessoas e as suas imprevisibilidades, estrelas e planetas, apesar da sua distância, a rotação e flutuação do nosso, apesar de não ser evidente aos sentidos, as reações termonucleares do sol apesar de inimagináveis, o buraco negro no interior da galáxia, sem o qual não existiríamos, a quantidade incontável de seres dos últimos biliões de anos sem os quais eu não existiria (e não falo só dos antepassados, mas de todos os que deram origem à linha do tempo particular que deu origem à formação do meu zigoto e também ao que sou agora) entre muitas outras coisas.

"Deixar entrar" tudo isso é muito confuso. É "muita areia" para um cérebro tão minúsculo como o meu. Mas há uma maneira de contrabalançar todo este excesso de informação e complexidade: responder com criatividade, com pulsão, com totalidade. Ou seja, à abertura ao mundo exterior responder com a abertura também das portas do mundo interior. Deixar explodir a criatividade, mas, sobretudo, ser íntegro. Deixar que cada parte de nós venha ao de cima e se junte para formar uma ação, num momento.

Esta junção, ou casamento, entre os mundos interior e exterior, amplamente abertos, é a forma de viver a vida que prefiro. Porque é que a prefiro? Não sei, mas sei que não gosto de me esconder do que existe, seja isso dentro ou fora de mim. E este é um caminho para a descoberta, para o crescimento, para a compreensão.

Quem sabe se a formiga também pode optar por viver assim e sentir talvez o mesmo esplendor?

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