quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
A experiência de ser professor em Portugal
"Todos os homens desejam naturalmente saber." Eis a famosa frase com que Aristóteles inicia a Metafísica e que se revela como verdade desde a mais tenra infância, não só no apreço que os bebés têm pelos sentidos, mas pelo gozo da descoberta de jogos, relações humanas, funcionamento das coisas. Esse gosto pelo saber continua pela infância, os "porquês" contínuos: o que provoca o vento? O que são as estrelas? Porque estás triste? O que me faz crescer? Como é que eu nasci? De onde é que vim? Porque é que estamos aqui? etc. Questões habituais que por vezes são incómodas simplesmente porque os pais não têm resposta simples para ela, e por vezes é difícil dizer:: "não sei, também gostava de saber". Não seria isso um recuo da autoridade, uma mancha na imagem do pai / mãe que se quer grandioso e ideal máximo da criança?
Enfim... finalmente a criança parte para a escola ou para o jardim de infância e rapidamente descobre o significado de "educação". Educação, neste país, significa acima de tudo obedecer. Estar sentado quando nos mandam, estar calado quando nos mandam, dar a resposta que se pretende quando nos mandam. Lentamente toda a actividade inquisidora, crítica, da criança, e vista como o pior dos males para quem tem de manter calados e na ordem 20 ou 30 miúdos, é destruída por aquilo a que chamamos "conhecimento", ou seja, o empinar de preconceitos como se fossem saber.
O problema, é certo, não está nos professores, que fazem o melhor que podem com aquilo que têm e que lhes é pedido. O problema está na nossa cultura, nas nossas tradições que repetem à exaustão que "o menino bom", "o menino bem comportado", é aquele que obedece, que ouve o que lhe dizem, que respeita os pais e os professores. O nosso objectivo não é criar artistas rebeldes, cientistas revolucionários ou dar as condições para que surjam homens e mulheres mais felizes, livres e realizados do que o que nós próprios podemos ser ou até conceber no nosso estado actual. O nosso objectivo é criar e manter o conformismo, a "normalidade", o bom senso, o bom gosto, enfim pessoas "bem educadas", iguais a nós, ou, pelo menos, previsíveis, controladas. Nesta linha de pensamento não tem grande importância construir ginásios, pôr miúdos de quatro e cinco anos a fazer o pino e a roda, saltos em trampolim, corrida, natação, enfim, deixá-los desenvolver ao máximo. Pelo contrário, é até um pouco melindroso que uma criança de cinco anos consiga fazer na perfeição um salto mortal quando o seu professor de português mal se consegue levantar da cadeira sem se apoiar na mesa.
Dar às crianças a liberdade de serem elas próprias e a capacidade de se expressarem pode de facto parecer assustador. Por isso o mundo actual das crianças e adolescentes divide-se em duas partes: os jogos, a internet, o convívio social, onde exploram, aprendem e se mostram, e o mundo dos "adultos": da obediência, da aprendizagem à força, da "seca" das aulas, onde raramente se aprende algo de útil mas se recebe o diploma para depois ir continuar a obedecer ao patrão, ao estado, a troco de dinheiro.
Pode ser duro de ouvir, mas a verdade é que estamos a ensinar às nossas crianças a prostituirem-se mentalmente. Para terem a aceitação dos pais e da sociedade têm de deixar de ser elas próprias, têm de deixar de se comportarem como querem, têm de deixar de desejar o que desejam, têm de passar a ser "outro", uma máscara, uma mentira, um papel social. E só aí, nessa mentira, a sociedade as aceita. Aí serão os directores, os pais e mães de família, os estudantes abnegados, os colegas desgarrados, etc. Mas a sua verdadeira individualidade, o seu verdadeiro nome, perde-se, algures, entre a infância e a idade adulta.
Haverá alternativa? Sem dúvida, é aliás mais fácil do que todo o trabalho que actualmente temos para inculcar, formatar e dinamizar os jovens e crianças. A alternativa é simples: em vez de lhes dizermos como têm que ser, comportar-se e o que desejar, vamos ouvir e dar-lhes o que eles querem misturado com o que precisam.
Por exemplo, vamos dar-lhes desporto, mas não sempre o mesmo, variado, de forma a terem um amplo leque de experiências para mais tarde poderem escolher melhor o que se adequa àquele momento da sua vida.
Vamos dar-lhes a oportunidade de escolher o que querem aprender. Mais ou menos desporto, mais ou menos arte, mais ou menos ciência. Terá de haver alguns limites para evitar as armadilhas do hábito, da preguiça e da inconsciência. Mas tudo o que fizermos e lhes dermos deverá respeitar sempre os objectivos daquele indivíduo, daquela criança. Enquanto professores o nosso papel é servi-los (tal como o objectivo dos políticos deveria ser servir o seu povo). É dar-lhes o que eles precisam sem desrespeitar o que eles querem.
Deveríamos também acabar com os preconceitos sobre o que as crianças são capazes de aprender. É claro que, como os estudos de Piaget mostraram, muitas das capacidades de pensamento abstracto só estão presentes a partir da adolescência, mas nunca é cedo de mais para nos maravilharmos com a gradiosidade do universo por exemplo. Saber que existem biliões de estrelas na nossa galáxia, e que existem biliões de galáxias no universo visível, que há ainda muitos mistérios (como a matéria negra ou o que acontece no interior de um buraco negro) que a ciência ainda não desvendou, dá às crianças a visão real do nosso mundo e do papel que o homem tem actualmente nele: a de um explorador de infinitos. Esse é um papel que qualquer criança compreende e no qual se sente à vontade.
Este tipo de ciência, os rudimentos da astrofísica combinados com uma humildade popperiana, é tudo menos desadequado para a mentalidade das crianças. Para além da ideia geral do cosmos dada pela astronomia, e de falarmos de átomos, moleculas e partículas da física, deveríamos também falar às crianças extasiadas pelo mundo do conhecimento como por uma história da Disney, dos dinosaurios, do possível cometa que dizimou a vida na terra, deveríamos trazer ilustrações de bichos "pré-históricos" e falar da vida social dos muitos animais que habitam a terra: de como os albatrozes acasalam para toda a vida, do sacrifício que os pinguins fazem para cuidarem dos seus ovos, das brincadeiras dos leões-marinhos.
Mostraríamos filmes, livros, a net, como um mundo maravilhoso, cheio de coisas belas para descobrir. Aprender a ler e a escrever seriam então a continuação desses jogos de infância, divertidos, que nos abrem as portas para mundos novos.
Neste mundo que imagino não haveria propriamente aulas com tempos rígidos, em vez disso haveria espaços definidos. Por exemplo, num certo espaço haveria internet, falar-se-ia de astronomia, o tecto seria abaulado e, como um planetário, haveria desenhos de estrelas, galáxias, nebulosas e planetas distantes. Haveria também telescópios para olhar para o mundo para lá do céu que podemos ver a olho nu. Para examinar as crateras lunares, os aneis de saturno, ou os enchames de estrelas que compõem as nébulas e que são visíveis em noites claras.
Noutro espaço haveria réplicas de dinosaurios e outros bichos. Haveria também internet, poderíamos fazer jogos em que faríamos de leão e gaivota, imaginaríamos ser um desses bichos com todas as aventuras e viagens que teríamos. Imaginaríamos também por exemplo ser um insecto ou uma flor beijada pelo sol, ou então golfinho, ou águia. Para realizarmos essa tarefa poderíamos dispor da vasta quantidade de informação disponibilizada pela net. Quanto tempo vive um golfinho, como são os seus grupos, como comunicam entre si, como criam os filhos, etc. Veríamos também imagens da beleza deste planeta, dos recifes de corais, dos estranhos animais que habitam as profundezas dos oceanos.
Noutro espaço haveria o mundo humano, vestuários diferentes, diferentes normas que regulam o casamento, o comportamento, o ideal do que é levar uma boa vida. Neste espaço ouviríamos falar dos ascentas indianos que rejeitam todo o tipo de posse e andam nus por toda a parte, comendo apenas o que as pessoas lhes queiram dar. Veríamos comparações com diferentes tipos de ascetismo, como por exemplo os franciscanos. Saberíamos que em certos países as mulheres não podem destapar a cara, votar ou possuir propriedade. Ficaríamos a saber que já foi um pouco assim nos sítios onde vivemos, mas que entretanto as coisas mudaram. Poderíamos aprender coisas sobre o Corão, a Bíblia ou os textos sagrados Hindus e Budistas. Poderíamos também estudar como vivem as estrelas de cinema, como é a vida em Hollywood e Nova Iorque.
Estariam vazias salas como estas? Ou iriam algumas crianças, depois de brincarem e rirem umas com as outras, depois de jogarem na net, de saltarem à corda, de fazerem o pino, de dançarem e sorrirem, mergulhar nesta aventura do conhecimento de coração e mente aberta? Tentando aprender tudo o que conseguissem, como se a visão que o homem foi conquistando ao longo de séculos fosse o bem mais precioso que podiam alcançar?
Este processo de dar às crianças aquilo que elas querem e precisam de forma livre, respeitando o seu próprio tempo e prioridades específicas, teria também a vantagem de cada um desenvolver as capacidades e saberes que mais lhe são próprios. Quem tem jeito para a matemática iria mais para a matemática, outros dedicar-se-iam mais a construir motores, outros à história, outros à filosofia, às ciências empíricas, à dança, ao desporto. Teria certamente de haver alguns limites, mas o essencial é que o conhecimento fosse um prazer!
O conhecimento proposicional ou liguístico é a a vantagem central que permite aos seres humanos ter o modo de vida luxuoso que (alguns) têm. Deveríamos ver esse conhecimento como um dos bens mais preciosos, não só pelo que nos permite em termos materiais, mas pelos caminhos que abre ao espírito, à mente e ao coração. O conhecimento, o verdadeiro conhecimento, é um conjunto de janelas abertas sobre o mundo.
Como chegámos ao ponto de o transformar em tortura para alunos e professores?
É difícil de imaginar, mas olhando para a realidade que nos rodeia, é fácil de perceber:
1) obrigamos: impôr algo, mesmo que seja a goluseima mais apetitosa, é meio caminho andado para a tornar indesejável.
2) saturamos: damos sempre o mesmo doce, ou seja, em vez de alternarmos a expressão física (ginástica, atlétismo, desportos em grupo), com a expressão artística (música, teatro, poesia, etc), e com a expressão científica (matemática, astofísica, história, antropologia, etc), insistimos sempre no mesmo, aulas, aulas e mais aulas, até se tornar compleamente saturante, até vomitarmos conteúdos, até a própria palavra "aprender", "estudar", se tornar motivo de nojo, de vómito, ser capaz de nos tirar a boa disposição de um Domingo ensolarado.
3) substituímos o verdadeiro conhecimento, prático, rico, ambíguo, por uma farsa: descontextualizámos o conhecimento do mundo real que lhe deu origem, ensinando teorias como sequências de palavras ou ideias que têm de ser memorizadas, e consideramos que isso é que é o saber. Por exemplo, na biologia estudamos os nomes dos animais e a sua "taxonomia". Um bom aluno é aquele que sabe categorizar os animais, mas não aquele que conhece a forma como vivem, o que sentem, o que desejam, etc. Ou seja, substituímos a imensamente rica realidade que nos rodeia, rica em significados, em interpretações, em detalhes, por uma fórmula arcaíca e rígida que deve ser memorizada. Esta fórmula de facto empobrece a nossa visão global da realidade, sobretudo a nossa experiência por contacto directo com o mundo.
Esta última razão é a mais paradoxal pois poderia parecer que seria útil à sociedade veicular o melhor conhecimento que tem disponível aos seus "filhos". Mas nos nossos dias é muito mais fácil veicular velhas teorias já esquecidas do que tentar acompanhar o conhecimento actual, numa mutação cada vez mais rapida. O ritmo a que novos conhecimentos e conjecturas surgem é cada vez maior, tanto nas ciências abstractas como nas empíricas. Por exemplo o fractal de Mandelbrot surgiu apenas nos anos 80, dando origem a uma explosão no estudo da topologia, só há poucos anos se soube que os buracos negros estão no centro da maior parte das galáxias, os primeiros planetas descobertos fora do sistema solar foram também descobertos apenas na última década.
Ou seja, o enorme investimento dedicado à ciência e tecnologia nas últimas décadas provocou uma explosão de conhecimentos e aquilo que parece ser verdade hoje pode vir a revelar-se falso amanhã. É por isso mais simples dar a história da astronomia do que ensinar a astronomia actual. É muitíssimo mais fácil ensinar a história da filosofia do que acompanhar as lutas, refutações e contra-argumentações da míriade de filósofos e filosofias actuais. Mas o preço a pagar é que só ensinamos teorias ultrapassadas, feitas em contextos diferentes do nosso e que procuravam atingir objectivos que hoje já não seriam considerados tão essenciais.
Como "stor" de filosofia deparo-me exactamente com esse problema. Os manuais em geral oferecem como hipótese de estudo da epistemologia autores como Kant, Descartes ou Hume. Gigantes que tiveram um papel crucial no desenvolvimento da ciência como a conhecemos hoje em dia, que ajudaram, e muito, a garantir que o Renascimento, o Iluminismo, não morreria à nascença e que, em vez disso, floresceria nas muitas ciências que conhecemos hoje. Mas o seu esforço, tão glorioso na altura, e pelo qual eu por exemplo, estou muito grato, é hoje descontextualizado. Hoje em dia não procuramos rebater os dogmas da religião, não tentamos encontrar um processo de justificação que rejeite tudo o que não seja absolutamente fundado. Se as filosofias de Descartes, Hume e Kant, ajudaram a acabar com a superstição e dogmatismo do seu tempo afirmando a necessidade de apenas acreditar no que era absolutamente evidente, a sua exposição nos nossos dias só pode incentivar a desconfiança na própria filosofia. Porque o desafio hoje é conciliar os diversos saberes. Assistimos hoje ao surgimento da filosofia das emoções, do conceito de "inteligência emocional" a par de muitas outras formas de inteligência. Ou seja, o desafio dos nossos dias é unir, sintetizar os vários domínios do conhecimento, criar pontes. Ora as filosofias do século XVII e XVIII que ficaram para a história não nos permitem fazer isso. Pelo contrário.
Ter de ensinar teorias que estão em franca dessintonia com os desafios do nosso tempo, a alunos que consideram a escola e o ensino como uma forma dissimulada de tortura e de controlo que os tenta privar da sua liberdade e autenticidade é de facto a experiência do filósofo "ao contrário". Ou seja, não aquele que traz luz, mas a confusão, não aquele que é desejado pelo saber, mas o que é temido pela imposição de meros conceitos, não aquele que desperta o amor por tudo (por que é isso o amor pelo saber) mas aquele que transforma tudo numa grande "seca" (num terreno infértil).
Haverá uma solução para devolver às mentes que brilham, do insaciável ser humano, o medicamento, os nutrientes, a paz, que intimamente procura e que só o saber, a visão sem obstáculos do mundo (interior e exterior) pode trazer?
Enfim... finalmente a criança parte para a escola ou para o jardim de infância e rapidamente descobre o significado de "educação". Educação, neste país, significa acima de tudo obedecer. Estar sentado quando nos mandam, estar calado quando nos mandam, dar a resposta que se pretende quando nos mandam. Lentamente toda a actividade inquisidora, crítica, da criança, e vista como o pior dos males para quem tem de manter calados e na ordem 20 ou 30 miúdos, é destruída por aquilo a que chamamos "conhecimento", ou seja, o empinar de preconceitos como se fossem saber.
O problema, é certo, não está nos professores, que fazem o melhor que podem com aquilo que têm e que lhes é pedido. O problema está na nossa cultura, nas nossas tradições que repetem à exaustão que "o menino bom", "o menino bem comportado", é aquele que obedece, que ouve o que lhe dizem, que respeita os pais e os professores. O nosso objectivo não é criar artistas rebeldes, cientistas revolucionários ou dar as condições para que surjam homens e mulheres mais felizes, livres e realizados do que o que nós próprios podemos ser ou até conceber no nosso estado actual. O nosso objectivo é criar e manter o conformismo, a "normalidade", o bom senso, o bom gosto, enfim pessoas "bem educadas", iguais a nós, ou, pelo menos, previsíveis, controladas. Nesta linha de pensamento não tem grande importância construir ginásios, pôr miúdos de quatro e cinco anos a fazer o pino e a roda, saltos em trampolim, corrida, natação, enfim, deixá-los desenvolver ao máximo. Pelo contrário, é até um pouco melindroso que uma criança de cinco anos consiga fazer na perfeição um salto mortal quando o seu professor de português mal se consegue levantar da cadeira sem se apoiar na mesa.
Dar às crianças a liberdade de serem elas próprias e a capacidade de se expressarem pode de facto parecer assustador. Por isso o mundo actual das crianças e adolescentes divide-se em duas partes: os jogos, a internet, o convívio social, onde exploram, aprendem e se mostram, e o mundo dos "adultos": da obediência, da aprendizagem à força, da "seca" das aulas, onde raramente se aprende algo de útil mas se recebe o diploma para depois ir continuar a obedecer ao patrão, ao estado, a troco de dinheiro.
Pode ser duro de ouvir, mas a verdade é que estamos a ensinar às nossas crianças a prostituirem-se mentalmente. Para terem a aceitação dos pais e da sociedade têm de deixar de ser elas próprias, têm de deixar de se comportarem como querem, têm de deixar de desejar o que desejam, têm de passar a ser "outro", uma máscara, uma mentira, um papel social. E só aí, nessa mentira, a sociedade as aceita. Aí serão os directores, os pais e mães de família, os estudantes abnegados, os colegas desgarrados, etc. Mas a sua verdadeira individualidade, o seu verdadeiro nome, perde-se, algures, entre a infância e a idade adulta.
Haverá alternativa? Sem dúvida, é aliás mais fácil do que todo o trabalho que actualmente temos para inculcar, formatar e dinamizar os jovens e crianças. A alternativa é simples: em vez de lhes dizermos como têm que ser, comportar-se e o que desejar, vamos ouvir e dar-lhes o que eles querem misturado com o que precisam.
Por exemplo, vamos dar-lhes desporto, mas não sempre o mesmo, variado, de forma a terem um amplo leque de experiências para mais tarde poderem escolher melhor o que se adequa àquele momento da sua vida.
Vamos dar-lhes a oportunidade de escolher o que querem aprender. Mais ou menos desporto, mais ou menos arte, mais ou menos ciência. Terá de haver alguns limites para evitar as armadilhas do hábito, da preguiça e da inconsciência. Mas tudo o que fizermos e lhes dermos deverá respeitar sempre os objectivos daquele indivíduo, daquela criança. Enquanto professores o nosso papel é servi-los (tal como o objectivo dos políticos deveria ser servir o seu povo). É dar-lhes o que eles precisam sem desrespeitar o que eles querem.
Deveríamos também acabar com os preconceitos sobre o que as crianças são capazes de aprender. É claro que, como os estudos de Piaget mostraram, muitas das capacidades de pensamento abstracto só estão presentes a partir da adolescência, mas nunca é cedo de mais para nos maravilharmos com a gradiosidade do universo por exemplo. Saber que existem biliões de estrelas na nossa galáxia, e que existem biliões de galáxias no universo visível, que há ainda muitos mistérios (como a matéria negra ou o que acontece no interior de um buraco negro) que a ciência ainda não desvendou, dá às crianças a visão real do nosso mundo e do papel que o homem tem actualmente nele: a de um explorador de infinitos. Esse é um papel que qualquer criança compreende e no qual se sente à vontade.
Este tipo de ciência, os rudimentos da astrofísica combinados com uma humildade popperiana, é tudo menos desadequado para a mentalidade das crianças. Para além da ideia geral do cosmos dada pela astronomia, e de falarmos de átomos, moleculas e partículas da física, deveríamos também falar às crianças extasiadas pelo mundo do conhecimento como por uma história da Disney, dos dinosaurios, do possível cometa que dizimou a vida na terra, deveríamos trazer ilustrações de bichos "pré-históricos" e falar da vida social dos muitos animais que habitam a terra: de como os albatrozes acasalam para toda a vida, do sacrifício que os pinguins fazem para cuidarem dos seus ovos, das brincadeiras dos leões-marinhos.
Mostraríamos filmes, livros, a net, como um mundo maravilhoso, cheio de coisas belas para descobrir. Aprender a ler e a escrever seriam então a continuação desses jogos de infância, divertidos, que nos abrem as portas para mundos novos.
Neste mundo que imagino não haveria propriamente aulas com tempos rígidos, em vez disso haveria espaços definidos. Por exemplo, num certo espaço haveria internet, falar-se-ia de astronomia, o tecto seria abaulado e, como um planetário, haveria desenhos de estrelas, galáxias, nebulosas e planetas distantes. Haveria também telescópios para olhar para o mundo para lá do céu que podemos ver a olho nu. Para examinar as crateras lunares, os aneis de saturno, ou os enchames de estrelas que compõem as nébulas e que são visíveis em noites claras.
Noutro espaço haveria réplicas de dinosaurios e outros bichos. Haveria também internet, poderíamos fazer jogos em que faríamos de leão e gaivota, imaginaríamos ser um desses bichos com todas as aventuras e viagens que teríamos. Imaginaríamos também por exemplo ser um insecto ou uma flor beijada pelo sol, ou então golfinho, ou águia. Para realizarmos essa tarefa poderíamos dispor da vasta quantidade de informação disponibilizada pela net. Quanto tempo vive um golfinho, como são os seus grupos, como comunicam entre si, como criam os filhos, etc. Veríamos também imagens da beleza deste planeta, dos recifes de corais, dos estranhos animais que habitam as profundezas dos oceanos.
Noutro espaço haveria o mundo humano, vestuários diferentes, diferentes normas que regulam o casamento, o comportamento, o ideal do que é levar uma boa vida. Neste espaço ouviríamos falar dos ascentas indianos que rejeitam todo o tipo de posse e andam nus por toda a parte, comendo apenas o que as pessoas lhes queiram dar. Veríamos comparações com diferentes tipos de ascetismo, como por exemplo os franciscanos. Saberíamos que em certos países as mulheres não podem destapar a cara, votar ou possuir propriedade. Ficaríamos a saber que já foi um pouco assim nos sítios onde vivemos, mas que entretanto as coisas mudaram. Poderíamos aprender coisas sobre o Corão, a Bíblia ou os textos sagrados Hindus e Budistas. Poderíamos também estudar como vivem as estrelas de cinema, como é a vida em Hollywood e Nova Iorque.
Estariam vazias salas como estas? Ou iriam algumas crianças, depois de brincarem e rirem umas com as outras, depois de jogarem na net, de saltarem à corda, de fazerem o pino, de dançarem e sorrirem, mergulhar nesta aventura do conhecimento de coração e mente aberta? Tentando aprender tudo o que conseguissem, como se a visão que o homem foi conquistando ao longo de séculos fosse o bem mais precioso que podiam alcançar?
Este processo de dar às crianças aquilo que elas querem e precisam de forma livre, respeitando o seu próprio tempo e prioridades específicas, teria também a vantagem de cada um desenvolver as capacidades e saberes que mais lhe são próprios. Quem tem jeito para a matemática iria mais para a matemática, outros dedicar-se-iam mais a construir motores, outros à história, outros à filosofia, às ciências empíricas, à dança, ao desporto. Teria certamente de haver alguns limites, mas o essencial é que o conhecimento fosse um prazer!
O conhecimento proposicional ou liguístico é a a vantagem central que permite aos seres humanos ter o modo de vida luxuoso que (alguns) têm. Deveríamos ver esse conhecimento como um dos bens mais preciosos, não só pelo que nos permite em termos materiais, mas pelos caminhos que abre ao espírito, à mente e ao coração. O conhecimento, o verdadeiro conhecimento, é um conjunto de janelas abertas sobre o mundo.
Como chegámos ao ponto de o transformar em tortura para alunos e professores?
É difícil de imaginar, mas olhando para a realidade que nos rodeia, é fácil de perceber:
1) obrigamos: impôr algo, mesmo que seja a goluseima mais apetitosa, é meio caminho andado para a tornar indesejável.
2) saturamos: damos sempre o mesmo doce, ou seja, em vez de alternarmos a expressão física (ginástica, atlétismo, desportos em grupo), com a expressão artística (música, teatro, poesia, etc), e com a expressão científica (matemática, astofísica, história, antropologia, etc), insistimos sempre no mesmo, aulas, aulas e mais aulas, até se tornar compleamente saturante, até vomitarmos conteúdos, até a própria palavra "aprender", "estudar", se tornar motivo de nojo, de vómito, ser capaz de nos tirar a boa disposição de um Domingo ensolarado.
3) substituímos o verdadeiro conhecimento, prático, rico, ambíguo, por uma farsa: descontextualizámos o conhecimento do mundo real que lhe deu origem, ensinando teorias como sequências de palavras ou ideias que têm de ser memorizadas, e consideramos que isso é que é o saber. Por exemplo, na biologia estudamos os nomes dos animais e a sua "taxonomia". Um bom aluno é aquele que sabe categorizar os animais, mas não aquele que conhece a forma como vivem, o que sentem, o que desejam, etc. Ou seja, substituímos a imensamente rica realidade que nos rodeia, rica em significados, em interpretações, em detalhes, por uma fórmula arcaíca e rígida que deve ser memorizada. Esta fórmula de facto empobrece a nossa visão global da realidade, sobretudo a nossa experiência por contacto directo com o mundo.
Esta última razão é a mais paradoxal pois poderia parecer que seria útil à sociedade veicular o melhor conhecimento que tem disponível aos seus "filhos". Mas nos nossos dias é muito mais fácil veicular velhas teorias já esquecidas do que tentar acompanhar o conhecimento actual, numa mutação cada vez mais rapida. O ritmo a que novos conhecimentos e conjecturas surgem é cada vez maior, tanto nas ciências abstractas como nas empíricas. Por exemplo o fractal de Mandelbrot surgiu apenas nos anos 80, dando origem a uma explosão no estudo da topologia, só há poucos anos se soube que os buracos negros estão no centro da maior parte das galáxias, os primeiros planetas descobertos fora do sistema solar foram também descobertos apenas na última década.
Ou seja, o enorme investimento dedicado à ciência e tecnologia nas últimas décadas provocou uma explosão de conhecimentos e aquilo que parece ser verdade hoje pode vir a revelar-se falso amanhã. É por isso mais simples dar a história da astronomia do que ensinar a astronomia actual. É muitíssimo mais fácil ensinar a história da filosofia do que acompanhar as lutas, refutações e contra-argumentações da míriade de filósofos e filosofias actuais. Mas o preço a pagar é que só ensinamos teorias ultrapassadas, feitas em contextos diferentes do nosso e que procuravam atingir objectivos que hoje já não seriam considerados tão essenciais.
Como "stor" de filosofia deparo-me exactamente com esse problema. Os manuais em geral oferecem como hipótese de estudo da epistemologia autores como Kant, Descartes ou Hume. Gigantes que tiveram um papel crucial no desenvolvimento da ciência como a conhecemos hoje em dia, que ajudaram, e muito, a garantir que o Renascimento, o Iluminismo, não morreria à nascença e que, em vez disso, floresceria nas muitas ciências que conhecemos hoje. Mas o seu esforço, tão glorioso na altura, e pelo qual eu por exemplo, estou muito grato, é hoje descontextualizado. Hoje em dia não procuramos rebater os dogmas da religião, não tentamos encontrar um processo de justificação que rejeite tudo o que não seja absolutamente fundado. Se as filosofias de Descartes, Hume e Kant, ajudaram a acabar com a superstição e dogmatismo do seu tempo afirmando a necessidade de apenas acreditar no que era absolutamente evidente, a sua exposição nos nossos dias só pode incentivar a desconfiança na própria filosofia. Porque o desafio hoje é conciliar os diversos saberes. Assistimos hoje ao surgimento da filosofia das emoções, do conceito de "inteligência emocional" a par de muitas outras formas de inteligência. Ou seja, o desafio dos nossos dias é unir, sintetizar os vários domínios do conhecimento, criar pontes. Ora as filosofias do século XVII e XVIII que ficaram para a história não nos permitem fazer isso. Pelo contrário.
Ter de ensinar teorias que estão em franca dessintonia com os desafios do nosso tempo, a alunos que consideram a escola e o ensino como uma forma dissimulada de tortura e de controlo que os tenta privar da sua liberdade e autenticidade é de facto a experiência do filósofo "ao contrário". Ou seja, não aquele que traz luz, mas a confusão, não aquele que é desejado pelo saber, mas o que é temido pela imposição de meros conceitos, não aquele que desperta o amor por tudo (por que é isso o amor pelo saber) mas aquele que transforma tudo numa grande "seca" (num terreno infértil).
Haverá uma solução para devolver às mentes que brilham, do insaciável ser humano, o medicamento, os nutrientes, a paz, que intimamente procura e que só o saber, a visão sem obstáculos do mundo (interior e exterior) pode trazer?
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2 comentários:
Mais que tudo quero ter
Pé bem firme em leve dança
Com todo o saber de adulto
Todo o brincar de criança
Agostinho da Silva
Fico satisfeita ao perceber através das tuas palavras, essa pulsante capacidade de assombro, genuína alma do "amigo do saber", a frescura do sonho e a fôlego para dizer a imensidão e diversidade, numa funda inspiração.
Parece-me bem vista, essa tua observação relativamente à discrepância que actualmente se verifica entre a vida em permanente e vertiginosa mudança e a estagnação das teorias e consequente fastio.
Precisamente! ^_^
Só gostaria de trazer mais a este mundo a "água" do deslumbramento da criança.
A humanidade está a caminho de mais e mais poder... e no entanto não o pusemos ao serviço de "nós". Trabalhamos quando poderíamos brincar. Maldizemos quando nos poderíamos apaixonar... Quando vamos para a reforma ligamos a televisão, a perfeita aliada da solidão, enquanto dentro de nós a Eterna Criança espera a oportunidade de se reconciliar connosco e de ver o Mundo como infinita oportunidade de mergulhar nos braços do Ser...
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