quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O Oceano vestindo Flores

Between My Country - and the Others -
There is a Sea -
But Flowers - negotiate between us -
As Ministry.
Emily Dickinson

(in, Tratado de Botânica, de Joana Serrado)


Vivemos num Oceano, um Oceano de Energia/Matéria, sabe-se lá... mas ao nível fundamental é tudo o mesmo, as mesmas ondas/partículas, cada parte de mim é feito da mesma coisa que cada parte de ti...

Em toda a parte o mesmo Oceano, contando a mais Bela história do Mundo...

E no entanto isso que está por toda a parte, em cima, em baixo, dos lados, não só não pode ser visto pelos olhos ou por qualquer outro sentido (a escala é outra), também não pode ser dito. Não é por acaso, é que este cérebro não foi feito para detectar quarks mas patos, nem para compreender equações diferenciais mas sorrisos e pauladas. Nós somos macacos que tentam ser Deuses, mas aquilo que os nossos sentidos e mente nos mostram é incomparavelmente diferente do que existe.

Olhamos para uma mesa e não vemos campos electromagnéticos, olhamos para uma pessoa, não vemos o seu passado, as suas angústias, o seu sistema imunitário, a história da sua criação na barriga da sua mãe. Vemos uma fatia, finíssima, da realidade.

A nossa construção enquanto seres vivos, o programa que nos permite pensar, ver, falar, sentir, dar as mãos, sorrir, tudo isso acontece a uma escala em que o Oceano é invisível - a Realidade em si mesma, passa-nos ao lado. Só com um grande esforço, de transcender as nossas limitações de animal terráqueo, podemos compreender o que temos em comum com as estrelas.

Quando comunicamos com outros pode ser extraordinariamente difícil passar essa mensagem de que estamos num mundo muito para além do Paraíso (well beyond Paradise). Zangas, máscaras, simplificações, uma vontade de se agarrar a um modelo de vida onde nós (o eu) tem lugar, querer que as coisas sejam de determinada maneira, tudo o que a sociedade transmite de pais para filhos sobre valores, ambições, medos, pactos e alianças, vergonha e medo, tudo isso é como areia lançada sobre o mais belo quadro.

Neste contexto falar do oceano é como andar nu na rua. Toda a gente anda nua debaixo das roupagens, mas é como se esse corpo nu não existisse. Como se as vestes não simplesmente o tapassem mas obliterassem, como se fosse uma mentira, uma ilusão. Se, em vez de irmos no conto do vigário dissermos às pessoas: "mas eu tenho uma pilinha, queres ver, está aqui, está até em bom estado de conservação" não adianta. Ninguém vai perceber, vão achar obsceno, sujo e triste. E isso não é verdade. Porque as próprias roupas surgiram para salientar, administrar e preparar para a Beleza do encontro dos corpos. A pila é bela, tal como todos os seus pintelhos, cuidadosamente dispostos como que a deixar o foco para o lugar central. Mas ninguém o compreenderá, pelo menos não da maneira real e simples da nudez das flores ou do mar.

Da mesma forma se dissermos às pessoas que a vida é uma coisa sem importância nenhuma, que podemos morrer ou viver, que há biliões de outros planetas e aventuras a decorrer, que a minha vida podia acabar já aqui, etc, não vai parecer belo. O carácter alucinado de mostrar o pénis em praça pública é o mesmo carácter alucinado de falar sobre a leveza da sobrevivência. Toda a gente sabe, mas esconde-se, porque não há estruturas mentais, sociais, cognitivas, que permitam integrá-la no seio saudável deste homem-macaco.

É por isso que este poema da Emily faz todo o sentido, porque somos como nações, cada um de nós, com a nossa história, ideais, linguagem própria, e quando nos dirigimos a outro não é possível irmos de imediato nus. Porque isso seria mentir. Se mostrarmos o pénis será como um acto de agressão ou de disponibilidade, não como um menino que simplesmente não vê porque se esconder (esconder o quê de quê?). Se falarmos sobre a irrelevância da vida será visto como uma depressão ou excentricidade, quando na verdade é apenas a integração de tudo o que somos em algo mais vasto e que também somos (mas de outra maneira).

A verdade é bela, e sempre que dissermos coisas feias podemos saber, só por aí, que estaremos a mentir. Daí que as flores sirvam de nossos embaixadoras. Elas também não dizem toda a verdade (o que parece impossível sequer de imaginar a este homo sapiens), não dizem todo o mar, não falam assim tanto do Oceano que todos somos, mas também não se afastam tanto do que é mais essêncial, que é a sua Beleza. O que seria do Oceano se não fosse Belo? É impossível de imaginar. As flores permitem-nos duas coisas: em primeiro lugar manter a integridade, pois as flores não atacam, mostram sem forçar, permitem e só por aí se vê como são parecidas com o Oceano. Em segundo a sua beleza é uma guia da verdade, pois se nem tudo o que é atraente é verdadeiro, tudo o que é verdadeiro é Belo. Em suma, podemos ser o infinito, mas já que temos de escolher máscaras que nos representem, que sejam o mais verdadeiras possíveis, que sejam flores.

O Amante, esse Infinito vestindo Flores...

2 comentários:

Anónimo disse...

Eu confesso que não tenho por hábito mostrar a minha pilinha em público. Não a tenho. Mas também não sofro muito com essa falta. se calhar é da maneira de ainda estar mais despojada!

Um beijinho

Luar Azul disse...

Bem, nunca podemos dizer "desta água não beberei", talvez um dia a tenhas e sintas uma grande necessidade de a mostrar (ou de a esconder). Eu sinceramente tanto me faz, mas aborrece-me ter de a esconder por causa dos medos e paixões de outros. Há dias soube que havia uma viagem de avião onde as pessoas iam nuas (naturistas), acho que para mim seria natural viajar num tal avião, sem sexo, sem desejo, sem posse, simplesmente com o corpo beijando a luz do Sol. Estilo Spencer Tunick. Mas enquanto não chegamos aí o melhor mesmo é ir aproveitando as roupas mais giras!!

Beijinhos também para ti!!! ^_^