Quantas vezes já me senti inibido na presença de estranhos, ou até de conhecidos. Mas esta miúda apresenta-se, sempre com presença substancial, nua, em frente de uma audiência que nem sequer estava à espera de a ver-se despir.
O choque da audiência, a naturalidade com que ela consegue permanecer em palco, por um lado pedindo a colaboração / entusiasmo, por cada peça de roupa que tira (sem se impôr forçosamente), mas por outro lado mantendo-se completamente no controlo da situação (a cena das mãos nas orelhas com o ímpeto das ancas, e o pormenor do círculo com o braço no final, como quem diz: tenho-vos na mão). Tudo isto sem grandes vestígios de vergonha ou auto-censura em frente a centenas de pessoas vestidas (literal e figurativamente).
É espectacular. Parece mesmo alguém que se libertou ou se tenta libertar de todos os conceitos vergonhosos (que nos reprimem) desta aparentemente tão aberta sociedade, mas onde nem nos sentimos livres para dizer abertamente o que pensamos. Isto sim é o melhor de Nietzsche: o fim da vergonha, o homem capaz de se mostrar, de se afirmar sem medo, seguro apenas em si, no seu sonho, mesmo perante uma sociedade repressiva, trazendo o mistério (simbolizado no lencinho) a esta realidade.
Muito giro mesmo e meticulosamente preparado. Notem-se os muitos detalhes: a roupa é claramente masculina, assim como a pose em palco, dominadora. Isto leva a uma confusão mental que nos impede de censurar inconsciente e automaticamente (como de costume) o que estamos a ver. De facto nem parece uma "puta" - longe disso - nem um exibicionista. a atenção é retirada ao público desde o primeiro momento com os movimentos extravagantes dos olhos, e a posição convencida e auto-confiante, que, em conjunto com o fato quase à homem, nos levam para uma paisagem algo surreal e burlesca, e depois a atenção volta a ser arrastada pelo lenço e seu mistério.
Enquanto a mente está assim entretida a tentar captar o mistério do lenço e a encaixar a estranha atitude da miúda na música, no fato, na dança (tudo um pouco bizarro), eis que ela se começa a despir. E aqui o facto fundamental é estarmos perdidos, sem referências. Se ela mostrasse vergonha castigávamos com "indecência!", se a música fosse sensual seria "erotismo", se a roupa fosse feminina seria um "truque barato". Mas a confusão dos papéis é tanta que a Ursula tem a capacidade de nos guiar, o olhar, a atenção, para a postura, para o lenço, para o controle que parece ter sobre nós, para a dança, para o passe de magia. E enquanto isso despe-se, deixando-nos atónitos nas nossas cadeiras. Afinal estamos a ver um passe de mágica trivial enquanto a ilusionista rompe com todas as barreiras de pudor que regem a nossa vida à séculos, dentro e fora de casa, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Outra estratégia é o modo de olhar, como se "nós" é que estivéssemos em cheque. Não só olha claramente e de frente para a plateia, como dirige olhares, como se, a qualquer momento cada um de nós pudesse ser posto num tête à tête virtual com a menina. É como se o espectador também estivesse no palco, tais são os olhares de cumplicidade e os pedidos (quando ainda se podem pedir) de entusiasmo do publico. Finalmente à sempre uma boa razão para tirar a próxima peça de roupa: o lenço parece vir de lá. Até parece um espectáculo de magia.
Temos de dizer que é um bom estratagema para se conseguir despir em público, quebrando as nossas fronteiras da vergonha, do ridículo e do bom gosto. Agora já sabemos, quando quisermos quebrar normas: manter o controlo, confundir o público alvo, desaparecer de cena rapidamente (enquanto a confusão está no ar). Contas feitas, poderemos ter chocado imenso e ofendido nada.
Ursula Martinez: wikipédia e página pessoal.
"In the striptease I take all my clothes off but its powerful, not vulnerable at all because you almost build a protective wall with your own sexuality." bbc
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