terça-feira, 6 de maio de 2008

O Jardim Interior

A nossa vida é uma constante comunicação, estamos sempre a receber coisas, muitas vêm do "interior" (pensamentos, emoções, dores físicas, etc), outras vêm do exterior (conversas, acontecimentos físicos e sociais, etc). Enquanto há vida há algo que se recebe, nem que seja a sensação subtil da passagem do tempo.

Cada uma destas coisas é como uma semente que embate em nós como num solo. Há sementes difíceis de brotar, que exigem um solo cuidadosamente preparado, como a imagem de uma equação complexa, uma passagem de Dostoievski, ou uma música de Hindemith. Há outras que se espalham como ervas daninhas, como uma discussão acesa, um insulto, ou até um elogio bem dado que nos faz corar.

Em qualquer dos casos nós temos um duplo papel: somos simultaneamente o solo e o jardineiro. O solo é o resultado do nosso passado, é a constituição que dele herdámos. A nossa psicologia, personalidade, atributos físicos e intelectuais, tudo isso é uma construção lenta de um número praticamente infinito de actos, dos quais só uma ínfima parte é da nossa responsabilidade (por exemplo, não escolhemos nascer homens ou mulheres ou nesta época - e isto condiciona imenso o nosso "solo", a nossa receptividade). Por outro lado, temos uma responsabilidade total enquanto "jardineiros", enquanto agentes que lidam com o que recebem desta ou daquela maneira. O jardineiro existe apenas no presente, o agente livre existe apenas no presente.

Por exemplo, suponhamos que sou insultado. O meu terreno, o meu solo, pode ser mais ou menos atreito a que essa "erva daninha" se espalhe incontrolavelmente. Em alguns casos o insulto pode estar tão em sintonia com a personalidade que lhe provoca convulsões incontornáveis, e só mais tarde e a muito custo pode o jardineiro intervir. Este tipo de reacções intempestivas são do tipo que não se consegue evitar, há até na linguagem jurídica uma providência para estas situações: «loucura temporária» ou algo equivalente. Estamos no mundo da desresponsabilização, em que o sujeito não está lá ou não se conseguiu exprimir ou fazer sentir naquela situação.

Um caso inverso é o do jardineiro que procura aquelas flores raras que dificilmente crescem à primeira tentativa, mas que são para ele tão valiosas que despende grande tempo e energia a preparar o solo (a preparar-se, a sua constituição) para as receber e fazer florescer. Isto aplica-se aos músicos, aos cientistas, aos amantes, e a todos aqueles que estão dispostos a metamorfosear-se interiormente na busca do que amam.

Este é o oposto do louco, porque está ciente do mistério, mas também do que quer e do que faz para o alcançar. O jardineiro conquistou neste caso o terreno, conhece-lhe as forças e as fraquezas, prepara-se longamente contra as ervas daninhas e prepara-o continuamente para a chegada das flores que tanto ama. Isto, em grande parte, é a consciência. Um movimento em direcção a um mistério (porque a Beleza é sempre um Mistério, tal como a razão de ser de um grande Amor), mas onde tudo o resto faz sentido tendo em vista esse Mistério.

Para cultivar o seu terreno o Jardineiro tem alguns instrumentos à sua disposição: o mais fundamental é a atenção. Na nossa analogia a "atenção" é a ligação da semente à terra. A atenção é absolutamente essencial em relação a coisas que o corpo não recebe de forma automática, neste caso, se não houver atenção simplesmente passa despercebido, não afecta, como se não existisse (ao contrário do que acontece com um medicamento ou algo habitual ou que possa ser recebido por estruturas já existentes, há muitas "plantas" que actuam mesmo sem a intervenção do "jardineiro"). Por exemplo uma música pode "entrar" bem intuitivamente, sobretudo se já estamos habituados àquele tipo de música, mas se for algo com o que não estejamos familiarizados, algo "novo", então exigirá atenção para se tornar significativa. A atenção é o esforço de relacionar muito do que já sabemos, as nossas estruturas cognitivas, os nossos conhecimentos, o nosso passado, sonhos, desejos, ao novo, ao desconhecido. Nesse esforço de integração o novo/desconhecido, passa a ganhar um papel, passa a estar integrado, ou seja, relacionado com tudo o resto que sabemos. Só assim saberemos se nos convém ou não, se é importante ou irrelevante e como havemos de lidar com ele. Muitas vezes as estruturas existentes não nos permitem lidar com algo novo. Há por vezes uma enorme distância entre o que sabemos e o que esse novo nos propõe e então surgem muitas tentativas de criar pontes entre aquilo que já conhecemos e o que tentamos conhecer. Pode ser uma pessoa muito diferente do que estamos habituados, pode ser uma teoria científica, pode ser uma técnica de Kung fu ou de btt, uma emoção transmitida pela música, etc.

O Jardineiro pode ainda desprezar, procurar / amar, ou estar grato. A atenção e o desprezo não são incompatíveis pois para desprezar algo temos de lhe dar atenção. O desprezo, neste contexto, é o acto de tentar negar o acesso de uma planta ao nosso solo. Pode ser tentar negar uma ideia, uma pessoa, um sentimento, etc. O desprezo, a repressão, etc, não são neste caso simplesmente a falta de atenção, ou o desinteresse, são uma forma de o jardineiro tentar controlar o seu jardim. São uma forma activa de construir o Jardim Interior à nossa maneira.

A procura / amor é o acto inverso do desprezo, mas há que salientar que quem procura é porque ainda não encontrou, e quem ama, ama algo muito para lá da sua compreensão. Ou seja, quem procura algo - o amado, uma ideia, uma forma de vida, etc -, procura algo que ainda não encontrou ou percebeu, e isto é ainda mais evidente nos casos em que há obsessão. A obsessão é um caso extremo de uma procura mal encaminhada. Na obsessão o jardineiro procura ardentemente que uma planta se dê bem no seu solo sem procurar conhecer as condições para o seu crescimento; vai tentando plantar as plantas à bruta mas não há meio de elas crescerem o que leva ainda a mais frustração e, por vezes, a mais obsessão. Na maior parte dos casos não adianta muito estar sempre a insistir no erro. A obsessão é em geral um sinal de que o jardineiro tenta a todo o custo que uma planta cresça sem se preocupar em analisar ou contemplar as causas do seu insucesso. A obsessão pode crescer continuamente sem nunca dar lugar ao seu objectivo que é a gratidão.

A gratidão é o movimento pelo qual o jardineiro permite que mais plantas de um certo tipo invadam o seu quintal. Por exemplo, alguém sugeriu uma ideia ao nosso jardineiro, que teve atenção a ela, integrou-a no seu jardim, ela cresceu, tornou-se apelativa, ele deu-lhe ainda mais atenção, desejou-a, etc. Se a planta dá bons frutos, ele pode ficar Grato, essa gratidão é como que o abrir as portas do Jardim a outras plantas do mesmo tipo. É uma espécie de sintonia com todas as plantas parecidas e um chamamento: venham...

A gratidão permite um crescimento enorme do jardim, embora, por vezes, deixe entrar plantas que se podem revelar muito imprevisíveis ou até, em certos casos, indesejáveis.


O "Amor", ou seja, "ver ou pressentir o Divino em...", é o que faz mover o Jardineiro nos momentos em que está livre do medo. Mas são estas quatro ferramentas (atenção, desprezo, procura e gratidão) que utiliza para ir moldando, em pequenos passos, o seu Jardim - a sua persona, o seu coração e mente - como se fosse um barco à vela que lhe permitisse ir de encontro ao seu grande Amor desconhecido.