domingo, 28 de agosto de 2011
Inveja e grandiosidade
Socialmente a inveja é apenas mais um daqueles pequenos pecados ou imperfeições que o ser humano tem, como a cobiça, mentira, etc. Mas para mim a inveja tem um papel muito especial porque normalmente é tão subtil que nem damos por ela.
Por exemplo, eu não gosto muito de râguebi. Gosto de olhar para as estrelas e ver o mar e pensar sobre o mundo. Para mim os jogadores de râguebi fazem pouco isso. Vivem uma vida diminuta, mesquinha, ocupada com pequenos prazeres. Pareceria então que não poderia ter inveja deles, certo? Mas é o oposto que sucede. É precisamente porque tenho inveja deles que os acho diminutos, o que é bastante contra-intuitivo, mas, pelo menos no meu caso, verdadeiro. Senão vejamos:
Um jogador de râguebi tem imenso prazer com a sua vida. Se ele não passar a maior parte do seu tempo a olhar as estrelas ou o mar é porque, no caso dele, não aprecia isso o suficiente. Pelo contrário é bem sucedido naquilo a que realmente dá importância. Lutou pelos seus sonhos, empenhou-se e agora partilha o seu sucesso com família, amiga e adeptos. É um realizador de sonhos, é um felizardo. Como se pode menosprezar alguém assim, que brilha nos estádios, que está "no topo do mundo"?
A ideia é, claro, desprezar tudo o que ele conquistou. Tal como ele poderia desprezar tudo o que nós conquistámos. E, com tanto desprezo, nós, eu, emerjo como o grande vencedor: os jogadores de râguebi não têm valor, os políticos não têm valor, os velejadores não têm valor, os ricos não têm valor, os que vencem as dificuldades do dia-a-dia não têm valor, etc, etc... Só eu, ganda Pedro, tenho algum valor. Só eu sinto as diabruras da vida, só eu a vivo no seu esplendor, só eu, verdadeiramente, valho a pena, só eu... o universo inteiro podia ter sido feito só para mim, sou tão grande e glorioso, eu, eu, eu...
Claro que, conscientemente, ninguém no seu estado normal pensa assim. Mas se nós deixássemos que a felicidade dos outros nos invadisse. Se nós deixássemos de sentir inveja pelos amantes abraçados e ternamente enleados, pelos famosos e ricos, que comem sempre em restaurantes luxuosos e conhecem todas as pessoas importantes, pelos jogadores de futebol e râguebi, pelos surfistas nas suas ondas prateadas de sol, pelas crianças imersas nos seus jogos sem fim, pelas andorinhas deliciadas com o voo, pelas joaninhas deliciadas com as flores, pelas abelhas, dançando de maravilha em maravilha, pétalas e cheiros e sabores de Paraíso, pelo velho olhando com melancolia o campo sereno, pelos albatrozes que regressam, depois de meses de viagem, ao seu companheiro para toda a vida, pelos leões marinhos que dançam felizes nas águas, pelo banqueiro que se ri com todas as suas notas, carros e ares de altivez... se o egoísmo não nos cegasse, viveríamos num mundo onde a maior parte dos seres é muito feliz a concretizar os seus sonhos, quaisquer que eles sejam.
Mas nós somos cegos, invejosos. Do homem da padaria, da mulher do talho, da criança pobre, do animal - pobre animal que não é humano, vida selvagem que é comer ou ser comido, a lei cruel do mais forte! - do jogador obtuso, do cientista insensível, do político corrupto, dos trabalhadores explorados, dos ricos ladrões, dos surfistas preguiçosos, de todos os que têm o que não deviam ter e de todos os que não têm o que deviam ter.
A inveja faz-nos viver num mundo feio e pobre. É o mundo que os nossos olhos vendados conseguem ver. Nesse mundo o Pedro é o Maior (para o Pedro). Tal como o Alberto é o Maior (para o Alberto). E todo o restante mundo anda perdido, coitadinho...
É um mundo triste e pequenino, e quanto mais triste e pequeno mais o eu que o vê brilha, na sua grandiosidade, na sua imensidão contrastante.
eu tive de escolher entre os dois mundos. Preferi perceber que é bom ser jogador de râguebi ou futebol, que é delirante, que é fascinante, como ser modelo, como ser padeiro, como ser chefe de família, como ser político, como ser escritor, como ser jornalista, como ser urso ou salmão ou leão marinho... O mundo está cheio de felicidade. De seres que se acham grandiosos, de seres que buscam, de seres que encontram, de seres que se seduzem, de seres que desistem, mas sempre, sempre, em aventuras mil, sempre ocupados com os reflexos deste Sol que ainda não nos abandonou e que um dia vamos ter de substituir pela nossa própria criatividade.
Sou pequeno, insignificante até, burro, reduzido, limitado, quase a morrer, parcial, uma gota de água efémera num Oceano imenso, mas inundado da felicidade que vem de todos os lados. Alimento-me dos prazeres dos outros. Enquanto cá estiver a vida vai passando por mim. Digo adeus à inveja e olá à minha pequenez e à felicidade de tudo. São dois lados da mesma moeda.
Por exemplo, eu não gosto muito de râguebi. Gosto de olhar para as estrelas e ver o mar e pensar sobre o mundo. Para mim os jogadores de râguebi fazem pouco isso. Vivem uma vida diminuta, mesquinha, ocupada com pequenos prazeres. Pareceria então que não poderia ter inveja deles, certo? Mas é o oposto que sucede. É precisamente porque tenho inveja deles que os acho diminutos, o que é bastante contra-intuitivo, mas, pelo menos no meu caso, verdadeiro. Senão vejamos:
Um jogador de râguebi tem imenso prazer com a sua vida. Se ele não passar a maior parte do seu tempo a olhar as estrelas ou o mar é porque, no caso dele, não aprecia isso o suficiente. Pelo contrário é bem sucedido naquilo a que realmente dá importância. Lutou pelos seus sonhos, empenhou-se e agora partilha o seu sucesso com família, amiga e adeptos. É um realizador de sonhos, é um felizardo. Como se pode menosprezar alguém assim, que brilha nos estádios, que está "no topo do mundo"?
A ideia é, claro, desprezar tudo o que ele conquistou. Tal como ele poderia desprezar tudo o que nós conquistámos. E, com tanto desprezo, nós, eu, emerjo como o grande vencedor: os jogadores de râguebi não têm valor, os políticos não têm valor, os velejadores não têm valor, os ricos não têm valor, os que vencem as dificuldades do dia-a-dia não têm valor, etc, etc... Só eu, ganda Pedro, tenho algum valor. Só eu sinto as diabruras da vida, só eu a vivo no seu esplendor, só eu, verdadeiramente, valho a pena, só eu... o universo inteiro podia ter sido feito só para mim, sou tão grande e glorioso, eu, eu, eu...
Claro que, conscientemente, ninguém no seu estado normal pensa assim. Mas se nós deixássemos que a felicidade dos outros nos invadisse. Se nós deixássemos de sentir inveja pelos amantes abraçados e ternamente enleados, pelos famosos e ricos, que comem sempre em restaurantes luxuosos e conhecem todas as pessoas importantes, pelos jogadores de futebol e râguebi, pelos surfistas nas suas ondas prateadas de sol, pelas crianças imersas nos seus jogos sem fim, pelas andorinhas deliciadas com o voo, pelas joaninhas deliciadas com as flores, pelas abelhas, dançando de maravilha em maravilha, pétalas e cheiros e sabores de Paraíso, pelo velho olhando com melancolia o campo sereno, pelos albatrozes que regressam, depois de meses de viagem, ao seu companheiro para toda a vida, pelos leões marinhos que dançam felizes nas águas, pelo banqueiro que se ri com todas as suas notas, carros e ares de altivez... se o egoísmo não nos cegasse, viveríamos num mundo onde a maior parte dos seres é muito feliz a concretizar os seus sonhos, quaisquer que eles sejam.
Mas nós somos cegos, invejosos. Do homem da padaria, da mulher do talho, da criança pobre, do animal - pobre animal que não é humano, vida selvagem que é comer ou ser comido, a lei cruel do mais forte! - do jogador obtuso, do cientista insensível, do político corrupto, dos trabalhadores explorados, dos ricos ladrões, dos surfistas preguiçosos, de todos os que têm o que não deviam ter e de todos os que não têm o que deviam ter.
A inveja faz-nos viver num mundo feio e pobre. É o mundo que os nossos olhos vendados conseguem ver. Nesse mundo o Pedro é o Maior (para o Pedro). Tal como o Alberto é o Maior (para o Alberto). E todo o restante mundo anda perdido, coitadinho...
É um mundo triste e pequenino, e quanto mais triste e pequeno mais o eu que o vê brilha, na sua grandiosidade, na sua imensidão contrastante.
eu tive de escolher entre os dois mundos. Preferi perceber que é bom ser jogador de râguebi ou futebol, que é delirante, que é fascinante, como ser modelo, como ser padeiro, como ser chefe de família, como ser político, como ser escritor, como ser jornalista, como ser urso ou salmão ou leão marinho... O mundo está cheio de felicidade. De seres que se acham grandiosos, de seres que buscam, de seres que encontram, de seres que se seduzem, de seres que desistem, mas sempre, sempre, em aventuras mil, sempre ocupados com os reflexos deste Sol que ainda não nos abandonou e que um dia vamos ter de substituir pela nossa própria criatividade.
Sou pequeno, insignificante até, burro, reduzido, limitado, quase a morrer, parcial, uma gota de água efémera num Oceano imenso, mas inundado da felicidade que vem de todos os lados. Alimento-me dos prazeres dos outros. Enquanto cá estiver a vida vai passando por mim. Digo adeus à inveja e olá à minha pequenez e à felicidade de tudo. São dois lados da mesma moeda.
quarta-feira, 10 de agosto de 2011
Prazer e Felicidade
Há coisas para nós tão óbvias, como a de que o prazer pouco ou nada tem a ver com a felicidade que achamos estranho como é que tantas pessoas procuram uma à espera de encontrar a outra. No entanto nem sempre foi óbvio para mim. Lembro-me de pensar nisso quando andava na faculdade, não foi tanto a partir de um livro mas de uma música que me despertou, dizia assim:
"Todos nós pagamos por tudo o que usamos
O sistema é antigo e não poupa ninguém
Somos todos escravos do que precisamos
Reduz as necessidades se queres passar bem
Que a dependência é uma besta
Que dá cabo do desejo
A liberdade é uma maluca
Que sabe quanto vale um beijo"
(Jorge Palma, A gente vai continuar)
Esta assimetria entre liberdade e dependência pôs-me a pensar. Do que é que precisamos? Em geral do que nos dá prazer ou que pusemos na cabeça que queremos. Mas é muito subtil a diferença entre fazer o que se quer (por liberdade), e fazer o que se precisa (por dependência). Por exemplo, quando eu como o primeiro palmier (adoro palmiers), é normalmente porque quero, mas quando já vou no terceiro já é por dependência. A diferença é tão subtil que praticamente todas as pessoas a ignoram e muitos defenderiam que é apenas uma questão de super-ego a interferir com os desejos e impulsos mais primitivos. O conflito entre a nossa natureza e a cultura. Tudo bem, admito, isso acontece. Mas não é disso que estou a falar. É algo muito diferente.
Para mim a felicidade é apenas isto: realizarmos o nosso sonho que só nos podemos saber qual é, ninguém nos pode dizer. Na verdade é muito difícil saber qual é o nosso sonho. É preciso estar em silêncio muito tempo, procurar muito bem no fundo de nós (como Bastian, no fim do livro, A História Interminável), o que por vezes leva muito tempo. E então, se tivermos sorte, descobrimos: o nosso sonho, o que realmente queremos fazer. É um sonho que não se diz por palavras, muitas vezes enigmático, por vezes mutável ou aparentemente mutável, por vezes indecifrável, outras vezes óbvio. Dizem que é o sonho que comanda a vida, mas este é um sonho pessoal e intransmissível, que "não pertence a mais ninguém" (como diz a música: "Um lugar ao Sol"). Só depois de termos um sonho é que podemos ser felizes. Porque a felicidade é a realização desse sonho, é pôr em prática o que já somos em semente, ou implicitamente, e torná-lo explícito, real no mundo. Isso é que é, para mim, a felicidade.
O prazer leva, em geral, à dependência, porque o corpo habitua-se e quer mais, e porque ficamos tão focados no que nos dá prazer que esquecemos tudo o resto. A felicidade é um contacto, uma expansão. É como se a semente entrasse em contacto com a terra e procura-se nutrientes, água, um sítio fofinho, ela tem de conhecer tudo, interagir com tudo, e depois começa a ver o sol e aí vai. É uma caminhada da parte para o todo, do minúsculo e incompreensível, para o visível e consciente. A felicidade é um crescimento, o prazer é apenas ser parte da máquina, do mecanismo.
Por isso, em geral (apesar de haver exceções), quem procura o prazer encontra a dependência, quem procura a felicidade abre-se ao mundo, apesar de por vezes encontrar muita dor.
"Todos nós pagamos por tudo o que usamos
O sistema é antigo e não poupa ninguém
Somos todos escravos do que precisamos
Reduz as necessidades se queres passar bem
Que a dependência é uma besta
Que dá cabo do desejo
A liberdade é uma maluca
Que sabe quanto vale um beijo"
(Jorge Palma, A gente vai continuar)
Esta assimetria entre liberdade e dependência pôs-me a pensar. Do que é que precisamos? Em geral do que nos dá prazer ou que pusemos na cabeça que queremos. Mas é muito subtil a diferença entre fazer o que se quer (por liberdade), e fazer o que se precisa (por dependência). Por exemplo, quando eu como o primeiro palmier (adoro palmiers), é normalmente porque quero, mas quando já vou no terceiro já é por dependência. A diferença é tão subtil que praticamente todas as pessoas a ignoram e muitos defenderiam que é apenas uma questão de super-ego a interferir com os desejos e impulsos mais primitivos. O conflito entre a nossa natureza e a cultura. Tudo bem, admito, isso acontece. Mas não é disso que estou a falar. É algo muito diferente.
Para mim a felicidade é apenas isto: realizarmos o nosso sonho que só nos podemos saber qual é, ninguém nos pode dizer. Na verdade é muito difícil saber qual é o nosso sonho. É preciso estar em silêncio muito tempo, procurar muito bem no fundo de nós (como Bastian, no fim do livro, A História Interminável), o que por vezes leva muito tempo. E então, se tivermos sorte, descobrimos: o nosso sonho, o que realmente queremos fazer. É um sonho que não se diz por palavras, muitas vezes enigmático, por vezes mutável ou aparentemente mutável, por vezes indecifrável, outras vezes óbvio. Dizem que é o sonho que comanda a vida, mas este é um sonho pessoal e intransmissível, que "não pertence a mais ninguém" (como diz a música: "Um lugar ao Sol"). Só depois de termos um sonho é que podemos ser felizes. Porque a felicidade é a realização desse sonho, é pôr em prática o que já somos em semente, ou implicitamente, e torná-lo explícito, real no mundo. Isso é que é, para mim, a felicidade.
O prazer leva, em geral, à dependência, porque o corpo habitua-se e quer mais, e porque ficamos tão focados no que nos dá prazer que esquecemos tudo o resto. A felicidade é um contacto, uma expansão. É como se a semente entrasse em contacto com a terra e procura-se nutrientes, água, um sítio fofinho, ela tem de conhecer tudo, interagir com tudo, e depois começa a ver o sol e aí vai. É uma caminhada da parte para o todo, do minúsculo e incompreensível, para o visível e consciente. A felicidade é um crescimento, o prazer é apenas ser parte da máquina, do mecanismo.
Por isso, em geral (apesar de haver exceções), quem procura o prazer encontra a dependência, quem procura a felicidade abre-se ao mundo, apesar de por vezes encontrar muita dor.
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