sábado, 19 de dezembro de 2009

Roda Viva

imagem: Kagaya

Às vezes pergunto-me se será do cobertor eléctrico ou das sete noites a dormir cerca de cinco horas, mas, a verdade, é que me sinto em grande desequilíbrio. Como numa montanha russa, ora vogando entre as estrelas ora entre os Infernos. Não é que desgoste, o meu coração anseia sem dúvida por uma vida de emoção e aventura, onde “algo” acontecesse. Simplesmente parece um bocado forçado que esse “algo” não seja efectivamente uma grande aventura (ir morar para um sítio desconhecido, tentar mudar o mundo, descobrir algo novo, etc) mas, sobretudo, a minha própria luta para lidar com um dia-a-dia que me surpreende continuamente e com o qual, devo dizer, ó vergonha das vergonhas, não sei lidar integralmente.

Sou prof, tenho alunos espectaculares, mas não posso interagir com eles como ser humano. Tenho de desempenhar o papel da “máquina”. Eu instruo, eles obedecem. Ah!! Horror dos horrores, quando seres humanos criativos, originais, que partilham este universo sabendo tão pouco dos seus segredos, que deveriam reunir-se como aquela frase de Tagore dizia, como “eternas crianças”:
On the seashore of endless worlds children meet
On the seashore of endless worlds is the great meeting of children.
Onde está essa alegria? Onde está essa partilha das eternas crianças num universo sem fim, pujante de mistérios?

A “escola”, o que chamamos de escola, é esse espaço onde o conhecimento é transformado na maior seca, a sabedoria é substituída por repetição de ideias, padrões, etc, e eu, amante eterno do Saber, faço parte de tudo isso, dessa máquina destrutiva de corações e ambições que tenta reduzir todos ao mesmo...

E eu tento, bem tento, ser outra vez essa criança original, mostrar e trazer à tona nos outros, o verdadeiro ser, que não passa de consciência, luz, amor.

Ai se eu pudesse, trazer de volta o espírito de mistério e assombro com que os bebés brincam com os seus brinquedos, e mostrar-lhes que, brincando entre as estrelas, viajantes das galáxias, nada mais somos, nada mais seremos, que crianças que brincam na sua barcaça, este planeta alimentado pelo Sol, onde crescemos inundados de mistérios sempre novos.

Mas, em vez disso, vou de carro, venho de carro, encapuçado dentro das minhas “vestes” de professor, e, neste mundo de aparências, ninguém me conhece e eu não conheço ninguém. Preenchemos formulários, detalhamos critérios, classificando tudo num mundo de papel do qual a escola e toda a sua burocracia se alimenta, e eu digo: «Sou a peça 58, o Sr. Professor de Filosofia» e, com isso, vendido às máquinas, feito peça de máquina, lá vou vivendo, ganhando o pão para o dia-a-dia...

Devíamos ser pagos pelo bem que fazemos à sociedade mas... e se a sociedade humana estiver já tão corrompida, se a nossa civilização, esquecida já dos horrores das guerras, da importância dos “verdadeiros valores humanos”, toda ela dedicada à produção, ao consumo, à economia, ao mercado, à eficácia, nos pagar, não pelo que fazemos de bem por ela, mas pela nossa capacidade de mantermos a sua perniciosidade?

O que devemos fazer então? Manter o nosso ganha-pão ou simplesmente sair fora e dizer: eu amo demasiado os homens e a vida para participar na sua destruição?

Acho que é por isso que ando numa roda-viva... em permanente desequilíbrio: talvez não seja tanto a falta do dormir ou o cobertor eléctrico, mas é que tento tanto ajudar e fazer deste um mundo melhor e, apesar disso, acho que só contribuo, mais um, para a degenerescência desta sociedade que parece dirigir-se, lentamente mas inexoravelmente, para uma terceira guerra mundial.

O problema, é claro, não está na educação em Portugal, mas na decadência em geral das civilizações ocidentais onde, com o fim da segunda guerra mundial, os grandes lobbies do armamento nos EUA, e os lobbies que se foram criando e fortalecendo, desde a banca à indústria farmacêutica, foram lentamente (e talvez involuntariamente) criando uma sociedade onde o objectivo principal é o lucro, onde o homem é visto essencialmente nesse duplo aspecto de consumidor (um Deus que tem) e trabalhador (um escravo da máquina de medos e necessidades). Este “homem máquina” que corre continuamente atrás de uma cenoura que o deixa permanentemente insatisfeito (o consumo), não augura nada de bom para o futuro da humanidade nos próximos séculos. Os ideais que levaram à construção da ONU, essa sociedade de nações onde a liberdade e os direitos humanos se deveriam espalhar a toda a humanidade, estão hoje relegados para segundo plano: a invasão do Iraque com pretextos falsos, assim como todas as outras formas de manipulação de que, por exemplo, Chomsky fala (apesar de não concordar com o seu pessimismo e teorias maquiavélicas), mostram bem até que ponto a decadência de valores das sociedades ocidentais chegou. O mote dos nossos dias é: dá-me dinheiro, dá-me coisas, dá-me estatuto, e eu esqueço-me de tudo o resto.