quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

O objeto da poesia

Enquanto que a filosofia fala sobre tudo e a ciência sobre quase tudo (supostamente tudo o que se domina se bem, mas nem sempre é assim...)  a poesia tem em geral um objeto muito mais específico: a relação com o que se deseja. Em geral é de desejo, frustração, conquista, desfrute ou abandono. O objeto pode ser variado, desde o próprio eu, a certos ideias ou estados de coisas, mas em geral é uma pessoa amada.

Por exemplo, a música do Jorge Palma, "Estrela do Mar" exprime essa enorme vontade de estar com alguém que desaparece. Pelo contrário a do Caetano Veloso "Não enche", exprime o oposto: a vontade de não estar com alguém que permanece. Pelo meio encontramos imensas variaçẽs, desde aquela da Mafalda Veiga "Cada lugar teu", que fala de como continuar a estar com os aspetos que amamos de quem desapareceu, passando pela muita antiga da Lara Li "Telepatia", sobre sexo, até a "Fascinação" cantada de forma imortal por Elis Regina.

Mais raro é quando o objeto do desejo é algo que está no próprio, por exemplo, a música dos Xutos e Pontapés "O Homem do Leme", pelo menos na versão original, fala desse desejo de se ser autẽntico, contra tudo e todos se for preciso.

A poesia é gira e faz-nos viajar mas só por si parece-me limitada neste sentido: deixa-nos na mesma, ou seja, podemos passar por coisas muito boas e muito más, mas todos esses sentimentos, só por si, não implicam qualquer crescimento, qualquer coisa que fique connosco quando tudo o resto se vai. Vivemos a conquista até que ela se vai e depois ficamos como estávamos antes. Vamos a correr atrás de um novo amor e volta tudo outra vez, o rodopio da vitória, derrota, humilhação, enobrecimento, ser um Deus um dia e um pedinte no outro... mas, no fim, mudámos? aprendemos? saímos diferentes dessa experiẽncia.

Penso que isso depende do modo como vivemos todas essas aventuras. Se nos focarmos na vitória ou derrota provavelmente aprenderemos muito pouco exceto que vencemos ou perdemos o objeto do nosso desejo. Mas, se contemplarmos todo o "jogo", os mecanismos pelos quais nos envolvemos, a diferença entre o que aparentamos querer e o que desejamos realmente (muitas vezes sem o saber "conscientemente" - ou seja, sem o conseguir verbalizar), os múltiplos significados da palavra "amor, muitas vezes contraditórios e até opostos... enfim... se formos refletindo nos porquês então sim, talvez saiamos mais engrandecidos dessa experiência, seja ela qual for.

No fundo, a nossa vida emocional, nessa perspetiva, é como uma enorme telenovela. E os resultados de a viver acabam por ter semelhanças com ver uma telenovela: em ambos os casos somos envolvidos, vibramos, amamos, sofremos, exultamos, vivemos exaltados mil e uma coisas, mas... se aprendemos ou não com isso, vai depender do "trabalho de casa" que fazemos a seguir a cada episódio. Temos de ter um espaço, um tempo, para pensar sobre o que acabámos de ver / viver. 

É pena, nesta perspetiva da aprendizagem, que a seguir a um programa a tv não guarde uns minutos com apenas um ecrã preto e silêncio absoluto. Para dar lugar à assimilação do que acabámos de "comer". Da maneira que existe, muito mais "lucrativa" (no sentido de dar ainda mais os cobiçados papeis impressos pela UE - vulgo "dinheiro" - a uma elite) mas não dando tempo para pensar, aquilo que comemos vai diretamente ao ãnus, para dar espaço ao que vem a seguir.

Num certo sentido, se não assimilarmos, se não pensarmos, se não refletirmos, no que nos acontece, somos apenas uma máquina de fazer caca. Mesmo aqueles que conquistam de facto os seus amores.

É um pensamento engraçado (de que me vou esquecer rapidamente).

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Amores irreais e cartas de amor ridículas

Já foi há tanto tempo que me parece agora um sonho, algo impossível de me acontecer, agora que me pareço mais lúcido. Mas hoje, ao reler por acaso velhos diários, reencontrei esse Pedro do passado que viveu tantos amores impossíveis.

Os amores impossíveis são, ao mesmo tempo, engraçados! Pois, quem os vive, vive uma grande aventura onde ele é não só o principal personagem, o cenarista, o escritor, realizador, compositor, audiência, etc. "lança os foguetes e apanha as canas!"

Eu tive vários amores verdadeiros, que nunca passaram. Uns mais correspondidos que outros, mas, perante todos, eu me ajoelho com a veneração de um fiel que se ajoelha perante Deus: com um sentido de missão e dedicação total, sendo que, na prática, apenas posso mostrar um insignificante reflexo da luz que me anima por aqueles que amo. Aí incluo, na primeira fila, os meus pais e irmãs e aquelas muito poucas pessoas que partilharam o meu olhar mais profundo.

Mas o amor impossível não é o meramente não-correspondido ou impossível devido à distância, mal-entendidos ou outro contexto. Não vejo nada de errado em continuar a querer o bem a quem não nos ama. O pai e a mãe demonstram muitas vezes o seu amor nas fases mais difíceis em que o filho quer ser "independente", etc. Chamo aqui de "amor impossível", não ao amor meramente inconcretizável, mas ao amor de alguém que apenas parece existir, a uma "persona" que inventámos na nossa mente e projetámos sobre algum pobre coitado que agora tem de sofrer as nossas investidas como se de algo absolutamente mágico se tratasse.

Claro que temos todos um aspeto mágico: somos filhos das estrelas, compostos de triliões de células, com uma história que se entrelaça com praticamente todos os outros seres da terra e se estende até ao princípio do tempo, e capazes dos maiores sonhos, das maiores barbaridades.... claro que sim, cada um de nós tem um aspecto mágico. O problema é quando precisamos que aquela pessoa seja compreensiva ao ponto de compreender os nossos aspetos mais profundos, quando precisamos que seja sábia ao ponto de nos guiar, quando precisamos que seja bela ao ponto de nos encantar e deixar cegos de luz... Ah pois! Nem toda a gente é assim. Na verdade talvez não haja alguém assim. Se nem nós próprios, que nos conhecemos há tanto tempo, nos compreendemos, quanto mais os outros.

Mas, se nem toda a gente é assim, há muita gente a quem talvez consigamos enfiar a carapuça, ou meter a máscara.

Acho que só tive um amor impossível, mas foi tão intenso e durou tanto tempo (talvez 3 a 4 anos), que a gargalhada que agora dou ao olhar para trás, é verdadeiramente colossal! Pobre de mim, pobre dela. As coisas disparatadas que eu disse e fiz! As coisas que a pobre teve de sofrer vindas de mim. E no fundo até podíamos ter sido amigos. Éramos colegas de faculdade e nada havia que levasse a que fôssemos mais do que isso. E, no entanto, sobre a imagem daquela rapariga frágil e preconceituosa, cheia de mentiras que vestia como ideais, eu consegui projetar a imagem desse ser perfeito, dessa Deusa - companheira ancestral cheia de Luz e Liberdade - seríamos os companheiros ideais.

Como é possível que a ilusão tivesse durado tanto tempo? Bem, claro está, isto dos amores impossíveis torna-se mais possível se eles não se virem. E nós estivemos quase sempre afastados. O telefone não era suficiente para estilhaçar a máscara nem os parcos encontros pelos corredores da faculdade. De modo que a verdade só se anunciou por um enorme multiplicar de ausências e de silêncios, de incompreensões que, de tantas, se revelaram como tal. Ao fim de muitos anos de "amor impossível" aceitei a verdade - era tudo ilusão - e a face da jovem frágil, colega de curso, voltou surpreendentemente à minha memória e substituiu a da princesa etérea anterior. Finalmente lembrava-me dos seus traços reais, das coisas parvas que dizia das aulas e dos colegas, de toda a sua superficialidade. Não era uma má pessoa, muito pelo contrário, era uma excelente pessoa, e talvez até pudéssemos ter sido "amigos", com as devidas distâncias. Era aquela, frágil rapariga, tão distante do que eu era e queria, que me tinha servido para projetar o meu sonho!

E enquanto vivi obcecado pelo ideal, muitas realidades, infinitamente mais belas e enriquecedoras para mim, me passaram ao lado. Deixei fugir a beleza que estava ali, à mão de semear, tão infinita, tão diversa, para me perder na beleza projetada pelas minhas necessidades.

O cómico nisto tudo é toda a enorme intensidade de sentimentos, amor e ódio, necessidade e esperança, em doses descomunais, e depois ver como isto só existe na cabeça daquela pessoa (eu), e como teria sido tão simples desmontar todo o teatro e simplesmente apreciar o vento, o sol e o mar.

Por outro lado também é cómico ver a diferença entre a pessoa que é o objeto da nossa "obsessão" (não consigo chamar-lhe amor) e aquilo que vemos nela. Pois a distância entre ambas é tão abissal que é praticamente impossível levar a sério essa confusão entre duas coisas tão distintas. Apetece mesmo dizer: oh Pedro!, mereces bem o inferno em que te meteste!

Neste poema de 97 escrevi:

"Nos teus olhos encontrei a Beleza
de um tempo tão longínquo..."

Como eu gostava de voltar atrás no tempo e dizer: «Oh Pedro! A Beleza é real sim, e continua cá, está a toda a tua volta: "como os medicamentos estão nas plantas" (Paul Simon), é preciso apenas sabê-la destilar. Mas essa miúda, deixa-a ir em paz... Essa miúda não é uma feiticeira (Jorge Palma), nem sequer tem muito a ver contigo: és tu o feiticeiro que distorceste a sua figura no teu olhar. Open your eyes! Open your eyes and see: the Beauty is all around you, it is boundless, it is within you and it transcends you...»

Enfim, felizmente tive também grandes amores. Aliás, tive amores de todos os tamanhos e feitios. Essa colega acaba também por ser um daqueles amores que colocamos entre os amigos e os conhecidos. Em relação a todos esses Gigantescos, médios e pequenos amores, espero que nunca deixem o meu coração. Quanto às ilusões, só mesmo para rir mais tarde!

Em suma, nem todas as cartas de amor são ridículas. Mas as que o são, são mesmo muiiiiito ridículas!