sábado, 27 de dezembro de 2014

Uma vida com sentido ou pelo menos com sabor

Temos de matar para viver (ou impedir que outros vivam, mesmo que sejamos vegetarianos)...

Temos de viver sem saber de onde viemos, para onde vamos ou qual o valor objetivo do que fazemos (se é que tem algum)... claro que podemos sempre ignorar a nossa ignorância e fazer de conta que sabemos. Mas não parece que esse fazer de conta mude algo de substancial.

Para além disso também não conhecemos as consequências "a longo prazo" de nenhuma das nossas ações.

Isto é como um cego que anda pelo mundo sem saber o que deve fazer mas sabendo que cada segundo que vive tem um preço... Um cego que sabe que é cego, um ignorante que sabe que ignora. O que fazer do tempo que resta?

A vida, sendo o que é, não faz sentido, pelo menos nada que se possa demonstrar.

Há pelo menos cinco saídas para este absurdo que é viver (deve haver mais). Uma é simplesmente um gajo matar-se. Outra é (fingir) acreditar em qualquer coisa ou conseguir mesmo esquecer a dúvida ou aprisioná-la num sítio tão distante que raramente vem à consciência. A terceira é ter a sorte de ser ingénuo e ignorar o que é incómodo (que não se sabe, que a nossa presença tem um custo para outras vidas, etc). A quarta é tentar fazer da nossa vida algo positivo para outras vidas. No plano da humanidade, se nós servirmos para proteger a vida do planeta da velhice e morte do sol, de cometas, etc, então o nosso "custo", a longo prazo, será compensador. Teremos trazido não só a nossa própria beleza inovadora mas também preservado a de muitos outros seres. Uma quinta é compreender que vamos morrer e que cada momento é incrívelmente precioso porque único, irrepetível e porque a vida é tão incrivelmente curta.

Um jogo absurdo, do qual não se compreende as regras nem o sentido, pode tornar-se muito giro se percebermos que é a única vez que o vamos jogar. Temos uma oportunidade e uma só para ver aquele movimento, para escolher aquele caminho e o que se segue ninguém sabe, mas vamos ver. Estamos a experimentar, a provar, e cada momento é único.

Os caracóis, os caranguejos, os mexilhões, as vacas, os bisontes, todos morrem, os homens vão para o céu! Nós inventámos sofás e tvs com telecomando, inventámos histórias onde somos o centro do mundo e tudo o que acontece é por nossa causa. É confortável, mas limitador. Todas essas teorias fecham-nos para a vida.

A vida, sem sentido, sem porquê, sem razão de ser, sem saber de onde vimos ou para onde vamos, a vida onde matamos e morremos, que pode não ter pés nem cabeça... mas, quando é a única coisa que temos, a única amostra de realidade, a única esperança de virmos a compreender alguma coisa.... tomamo-la com gosto, dançamos com ela, e damos-lhe tudo o que somos e ela, nessa dança, torna-se Bela, Valiosa, sempre nova... é: não vai durar muito, tudo isto, mais vale aproveitar enquanto há.

Estas duas últimas saídas(4ª e 5ª), a de aceitar a morte e de contribuir para a vida em geral, andam bem de mãos dadas. De um ponto de vista conceptual o problema do sem sentido da vida não se resolve, abrimos apenas mão de tentar que a vida faça sentido, para mergulhar no suculento mistério que é viver.



sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Amor e aporias

"Não posso viver sem ti" é uma expressão por vezes tomada como sintoma de amor. A mim faz-me confusão usar apenas uma palavra para significar coisas tão diferentes, em parte opostas. Então prefiro, pelo menos para mim, diferenciar: a dependência e o desejo de um lado, o amor do outro. O amor, nesta aceção restrita, é também um desejo, mas não de ter nem de receber. Por isso talvez o devêssemos chamar antes de vontade (criar / fazer): um querer o bem de outro(s).

Nesse sentido em que prefiro usar as palavras, "não posso viver sem ti" é uma expressão de desejo, mas nunca apenas de amor embora também possa haver amor associado ao desejo. Também os crimes passionais, não poderiam ser chamados de crimes de amor, a não ser que fosse, por exemplo, de roubar comida para dar a alguém que se ama. Mas aqueles em que se mata por ciúme são o oposto de querer o bem ao outro. (Queremos, isso sim, o nosso bem e por isso estamos dispostos a matar quem nos traiu.)

A paixão é uma coisa gira, arrasta-nos como uma montanha russa. Ora estamos no topo, temos tudo, ora esse tudo nos foge, nos desilude, nos maltrata. É uma grande aventura que eu pessoalmente acho gira de ver nos outros, muito gira mesmo mas que a mim não me fascina viver na pele pois vejo de perto as grilhetas que me põe na alma, a ilusão de que está vestida e todo a comicidade de querer "ter" o outro (como se isso fosse possível) e de o querer fazer à imagem do que preciso que ele seja para que ele seja o meu ideal (como se fosse possível que o outro fosse algo que não liberdade, como eu).

Sendo então a paixão algo que gosto de ver nos filmes e nos olhos e vidas dos outros, resta-me então o amor para brincar. À partida pode não aparecer grande aventura "querer o bem" de alguém. Parece uma coisa estilo Madre Teresa de Calcutá ou algo assim extraordinariamente chato.

Mas não é!

Amar (neste texto amar significa querer o bem de alguém) leva a tudo menos à monotonia.

Há pessoal que nos tenta convencer que é fácil amar, pega-se numas roupas e comida e distribui-se e tá feito o amor. Mas essas pessoas, duvido que sejam boas amantes. O amor nunca se fica pelo superficial, mesmo quando começa simples é uma chave para a complexidade, para mil e uma dúvidas, para mil e um caminhos, para aporias, mistérios, mergulha-nos num constante "não saber o que fazer", e, portanto, numa constante aprendizagem. Num certo sentido, as aventuras do amor são muito mais deliciosas e diversas que as das paixão. São mais envolventes, não é só os sentidos, não é só: eu perdi isto, eu ganhei aquilo, eu queria aquela... É tão mais do que eu e a minha história e os meus ganhos... é o mundo todo que se abre, tudo o que eu amo... para ser um bom amante é preciso compreender o outro, e é preciso, mais ainda, libertar a beleza, a liberdade, o amante que há em nós, e deixá-lo correr, voar, brilhar... DANÇAR!!!

Coisas simples: eu amo alguém que se droga, que tem um vício que lhe tira a vida, a alegria, a liberdade... quero o bem dessa pessoa. O que fazer?

Ou: eu amo duas pessoas que se combatem. Quero o bem de ambas mas o bem de uma pode ser procurar o mal da outra, por exemplo, dominá-la.

Ou: eu amo alguém que me quer fazer mal.

Ou: eu amo alguém que não me compreende e vê em tudo o que faço coisas que eu não pus lá....

Isto leva a viagens. Eu posso amar uma serpente... deixá-la-ei comer-me para que ela viva? Matá-la-ei porque a minha vida é mais importante do que a dela? Ah! Matai a serpente dirá a sabedoria humana, matai tudo o que não somos em nome do homem, esse ser cuja sobrevivência é mais importante do que de todas as outras espécies em conjunto. Mas podemos imaginar que estamos numa guerra. Saber quem começou a guerra importa? Sabemos sequer quem começou? Quem é bom, quem é mau? Ou nada disso importa mas apenas o facto de sermos "nós" contra eles. Matamos então o amor a "eles" e matamo-los a eles. Mas porque serão eles menos merecedores de amor se até estão dispostos a morrer pela sua pátria, pelos seus amigos e família? Esse que ergue a sua arma contra mim e a aponta e aperta o gatilho fá-lo em nome das suas amizades, da grandeza da sua coragem, da sua pátria. Devo então deixá-lo ganhar? O que tenho eu a mais do que ele, em que valho mais?

E, se por acaso, fosse eu a ganhar o combate, mas apenas o ferisse sem o matar. Deveria então socorrê-lo e tratá-lo e guardar-lhe as cartas para a família? Servir-lhe de confidente talvez?

E até que ponto devemos amar? Quem devemos amar? Deveremos amar quando nos matam a família? Nas guerras civis, entre homicídios, raptos, violações...  haverá lugar para o amor ao inimigo? Fará sentido querer o bem a quem violou as nossas irmãs? E como amar um tal violador senão dando-lhe o que ele merece, o que ele ganhou com o suor das suas ações? Não será aqui o perdão imerecido uma falta de amor? Será então a guerra, cheia de ódio e violência, uma espécie de orgia onde os amantes se ensinam o que é o respeito, o que é a virtude, onde se relembram mutuamente, através das suas lanças, como beijos, da sacralidade que violaram antes como cegos?

Amantes... amantes severos, amantes cegos, amantes terroristas bombistas, fanáticos, cegos, cegos, cegos... mas amantes mesmo assim...


Ou então simplesmente temerosos, ou então simplesmente obedientes, ou então simplesmente sem opção.

Quem sou eu  e quem és tu?

O amor, para mim, não é só dádiva, "querer o bem do outro", é também ver o divino (sagrado) no outro.

Tu fazes-me e eu visto-te, de palavras, de sonhos... de desejos e objetivos... os dois fazemos um só, duas asas do mesmo pássaro.

Mas vê! Não és a única asa com quem posso voar...

E dizem-nos
afirmam-nos
gritam-nos aos ouvidos:
incessantemente
cruelmente
sem qualquer piedade
que,
em nome da piedade
e em nome do amor,

só podes Amar Um!

só podes Amar Um único Ser!

a tua "cara metade"
a tua "alma gémea"
a tua esposa, o teu esposo.

E tudo o que vá para lá disso
é ultrage
é infâmia
é degredo
é mentira
é TRAIÇÃO!

Gritam-me isso ao ouvido. Mas eu sei, sei de uma forma tão clara que não preciso de me lembrar e por isso não posso esquecer, que é impossível amar alguém totalmente sem amar tudo o que esse alguém é, e cada alguém traz pedacinhos de todo o mundo dentro de si, reflexos. Tu és pó de estrelas, és eletromagnetismo condensado, és liquido e vapor, és alma e sangue, és história, potencialidade, és presente, és vibração imprevisível, és pensamento, és ação e movimento, és sede e fome, és abundância... tu és tudo e nada, és mortal e és divino e infernal... e se te amo amo também as estrelas em que foste feito, o planeta que te dá origem, a comida de que te alimentas, as fezes que distribuis como se não fossem tuas, as unhas que crescem sem que saibas como, a tua sede de ser melhor, a tua ignorância, que escondes como podes e te faz viver tantas aventuras e dá tanto peso à tua vida, o teu sexo, misterioso, ponte para muitos mundos, ponte para ti, para o teu prazer, para sermos, pelo menos num momento, um; fundidos, encalorados, rodopiantes, sem fronteiras nem cisões, apenas um... amo tudo isso e muito mais. Mas quantos reflexos de ti têm as outras pessoas? Quantos outros alguéns são também filhos das estrelas? Quantos outros alguém têm também sonhos e pesadelos? Posso amar-te a ti sem amar os outros? O outro pó das estrelas, os outros sexos, também caminhos para a interioridade e intimidade? Tu és tu, tu és eu, tu és eles também. E eu também sou eles. Somos todos muito parecidos. Não! Não posso amar-te sem amar tudo... é impossível amar-te, que és mulher, sem amar todas as mulheres. É impossível amar-te, tu que amas, sem amar todos os que amam. E se amo a tua vontade de sonhar, a tua liberdade, tenho de amar todos os que têm vontade de sonhar, e são livres.

Este discurso não encaixa... em lado nenhum da nossa sociedade. E no entanto é a nossa sociedade, arrisco a dizê-lo, que não encaixa no mundo. Queremos ser especiais, únicos... mas o mundo é muito mais belo que isso. Em vez de ser quase tudo lixo e tu e eu sermos aquelas coisas belas que surgiram no meio da podridão... é quase tudo luz, luz condensada em matéria, tecida em padrões infinitamente complexos e que, numa história inimaginavelmente longa, nos trouxe à existência por modos e motivos (até agora) insondáveis, mas que tem pelo menos um resultado claro: o de que a existência se pode tocar a si própria neste local que cada um de nós é: pelas sensações, emoções e pensamentos...

Eu não encaixo nesta nossa civilização tão desencaixada da realidade. Queremos ser especiais, mas pelas razões erradas: por sermos diferentes. Mas nós somos especiais precisamente pelo contrário, por estarmos integrados nesta história interminável e insondável. Por sermos dignos de amor tal como o grão de areia a gota de água momentânea na onda que faz splash na praia ou a estrela que explode continuamente para o exterior por biliões de anos...

Neste mundo não faz sentido amar apenas uma pessoa, ou apenas todas as pessoas. O que faz sentido é ver o mar em ti. É ver o céu em ti, ver a infinita beleza em ti, mesmo quando ergues armas contra mim. Mesmo quando não me compreendes, mesmo quando me tentas destruir. E eu não sou importante, a minha vida não é importante, a minha felicidade não é importante, o meu caminho não é importante, a minha realização não é importante.

O que é importante é que a miríade de seres, de viagens, de aventuras, de amores e desamores, de paixões, de mistérios, de ligações... que tudo isso e muito mais, que TUDO continue a existir, a florir, a amar e a odiar e a desejar e a iludir-se para lá de qualquer esperança. É preciso que o MAR continue, é preciso que o mar continue...

E, todos os indícios apontam para isso, o Cosmos vai continuar, com a sua infinita beleza, com todas as suas músicas, cores e sabores, muito depois de eu morrer e de todos os meus amores e paixões morrerem ou se transmutarem em novas histórias e personagens... e esse é, de todos os pensamentos que já tive, o que me deixa mais feliz.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

fome pelo real

Poderia parecer estranho que algum dia chegasse a existir a religião, pois o amor que sentimos e a beleza que vemos já seriam, certamente, mais que suficientes para dirigir a nossa ação.

Parece-me que a razão pela qual isso não acontece deriva do modo como a nossa experiência depende do corpo / cérebro. Uma vez que temos sempre um ponto de vista a partir do eu (sentimos a nossa dor mas não a dos outros, percebemos facilmente o nosso valor, mas não o do resto) é difícil compreender, desse ponto de vista, porque haveria eu de fazer algo que não fosse em proveito próprio (por exemplo, evitar a dor de outros, se isso em nada me afeta).

A religião ajuda nesse sentido ao prometer que eu irei atingir algo (nirvana, paraíso, imortalidade, etc) se adotar outros pontos de vista para além do meu. O que torna as pessoas mais sensíveis, prestáveis e com comportamento mais homogéneo.

A religião tem ainda uma outra vantagem: à medida que vamos adotando cada vez mais pontos de vista, começamos a perceber o valor de muitas outras coisas para além de nós próprios. Ou seja, vivemos num mundo cada vez mais rico de valor, mais belo, onde vale mais a pena viver. Neste mundo já não existo apenas eu e o meu valor. Tu também és apaixonante e valeria a pena dar a minha vida para que tu pudesses viver a tua (um mundo duplamente mais valioso). E, à medida que vou caminhando, não és só tu, é também, ele, ela, nós. E, à medida que vou caminhando, não somos só nós: o mar é belo, o céu é belo, as pedras são belas... enfim, aproximamo-nos do ponto em que tudo é belo e nós também o somos, agora já não por sermos a única coisa que tem valor, mas por fazermos parte de um infinito a tantas vozes, cada uma com o seu incomparável valor e beleza.

A desvantagem é que, a partir do momento em que tudo se torna significativo, valioso, em si mesmo, a religião já não nos pode ajudar a encontrar ainda mais valor. Torna-se como o andarilho a quem quer aprender a dançar. A partir daqui só pode ajudar a restringir o valor seguindo agora o processo inverso: temos de evitar ver o ponto de vista dos outros, daqueles que não pertencem ao grupo (hereges, céticos, dogmáticos, iludidos, superficiais, etc).

Nem a arte nem a ciência, isoladamente, conseguem fazer o papel da religião em todos os casos. A arte não exige que saiamos da nossa concha (ponto de vista). A ciência não sugere a beleza, pelo contrário: certos cientistas vêm o mundo como um mecanismo desprovido de propósito e beleza, e ficam contentes por acharem que estão acima da maior parte da humanidade ao escaparem às ilusões do sentido e significado como algo que transcende a subjetividade.

No entanto penso que o homem do iluminismo, como da Vinci, para quem a ciência e a arte eram aspetos diferentes da mesma fome pelo real, pode atingir a mesma visão esplendorosa da realidade que algumas religiões proporcionam. Mas, para quem vê o mundo rodando à volta do seu eu, a religião parece continuar a ser talvez a única alternativa a um mundo de solidão. E para muitas outras pessoas também, uma vez que as principais alternativas oferecidas atualmente (hedonismo / consumismo, mecanicismo pseudo-científico, arte num mundo absurdo, etc) também não parecem oferecer grande esperança.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

O desafio atual - plenamente Atento - um gesto de Amor

Até há dois dias atrás o desafio era acabar os exames (uff... ufff...) e não deixar que o trabalho de muitos meses caísse por terra... um peso que se estava a tornar num inferno...

Agora, sem esse peso, a vida parece um esvoaçar: ir às compras, meter o carro a mudar a correia de distribuição, arranjar aparelhos elétricos cá em casa (alguns há anos que andavam à espera do seu turno, incluindo este teclado ^_^), tudo isto parece uma festa... leve, livre...

Para o ano apenas 3 cadeiras em vez das 10... o que fazer com tanto tempo livre?

Subitamente desenha-se um desafio, um desafio que merece muitos meses a ser confrontado:

Estou aqui, num mar de estrelas sem fim, rodeado de oceanos, pessoas, emoções e pensamentos que desconheço... sei que vou morrer, em breve, no máximo algumas décadas de vida. O que fazer face a esta imensidão? O que fazer perante um mundo que me parece tão belo? O que fazer num sítio onde tudo é absolutamente misterioso? O que fazer com o tempo que me resta?

Poesia? Criar?
Ciência? Perscrutar?
Amor? Ser-livre-com...

Não há qualquer dúvida! Pois tudo o que desejo são facetas umas coisas das outras: o Encontro com tudo o que Existe de acordo com as minhas pequenas possibilidades!

Mas isto é na teoria... e na teoria é fácil imaginarmo-nos a ser o melhor bailaranino do mundo, o melhor mestre de artes marciais. Na imaginação o corpo não pesa, é absolutamente rápido, absolutamente destro, absolutamente ágil. Faz tudo o que queremos, quando queremos, à velocidade que queremos. Nunca caímos, nunca falhamos, nada nos escapa, a não ser se for para dar mais ênfase / dramatismo à história que corre na nossa imaginação.

Na realidade, perde-se o fôlego, o corpo arrasta-se, sentimos dores, não se dobra no sítio certo nem à velocidade certa. Somos uns desengonçados... a não ser depois de mesmo muitos anos de prática, e mesmo assim...

Ou seja, na realidade, Criar, Perscrutar, Ser-livre-com... a maior parte das vezes desemboca em rotinas, em prazeres que são vícios, em fugas e becos-sem-saída, em falsas esperanças e outras ilusões, em sonhos de grandeza que só mostram a nossa miséria, numa montanha russa de ganhos e perdas e ânsias por coisas que supostamente queremos mas que afinal não nos levam onde queríamos chegar... apenas aparentavam ser desejáveis.

Na verdade, a vida é mágica por todo o lado, mesmo na maior dor, se pusermos a tocar o Adagio de Albinone, percebemos a beleza da perda... Mas precisamente por ser tão bela em tantos sentidos diferentes podemos rapidamente perder o poder de síntese que nos dá a visão do todo e um caminho que resulte do florescimento de nós mesmos.

Ou seja, pode ser belo ter um acidente de carro e ficar todo partido. Mas, podendo escolher, preferimos manter o carro intacto durante a viagem. E pode ser belo ir para o parque de estacionamento subterrâneo de um centro comercial, ou uma lixeira! Mas se calhar preferimos atravessar a serra de Sintra e ir ver o Oceano do alto dos seus penedos...

É impossível sair da beleza da vida. Quem acreditar em Deus, pode talvez achar que é como a assinatura do Criador, está em cada coisa, em cada flor, em cada neurónio, em cada proteína. Mesmo na morte, precisamente por ser tão dolorosa, sendo ao mesmo tempo uma libertação.

Mas, podendo escolher... parece haver caminhos preferíveis a outros.

Afinal o corpo da Amada é Belo em todos os seus poros, em cada ponto da sua pele...

Mas, podendo escolher... há um caminho, uma música, a percorrer com ela e para ela...

e eu, aparentemente, posso escolher...

escolher o quê?


plenamente Atento à tua beleza


um gesto de Amor

sábado, 28 de junho de 2014

Mentir é uma traição

Mentir é uma traição...
...e a pior traição é a que fazemos a nós próprios
(pois a partir daí traímos tudo e todos, mesmo com boas intenções - deixamos de saber onde está a verdade).


No entanto, mentimos a nós próprios constantemente. Precisamos de mentiras para nos sentir seguros: o mundo imenso e intratavelmente complexo pode ser visto como um trampolim imenso no meio do desconhecido, onde cada salto (ação) não nos salva do infinito desconhecido que nos rodeia por todas as partes. E isto porque não sabemos de onde vimos, para onde vamos, nem sequer se aquilo que vivemos é "real"... Claro que também podemos ver ao contrário, todas estas dúvidas como exageros e o que vemos com os sentidos como o evidente de que podemos partir com confiança, até prova em contrário.
Mas esta mesmo possibilidade de ver de maneiras tão diferentes a mesma realidade, e a coerência de cada uma das visões (entre outras também coerentes), torna evidente que se trata de uma questão de fé... e não pode haver fé sem mentira ou, pelo menos, ilusão, pois ter fé é afirmar algo sem provas, é acreditar naquilo que, na realidade, se desconhece.

Mas, se a vida é essa vertigem onde nada se percebe, o que podemos dizer a nós próprios de verdadeiro? Se não nos quisermos "trair", não estaremos remetidos, ou ao silêncio, ou a um discurso meramente negativo: do que não se pode dizer?

Ou, pelo contrário, será que, ao assumir essa ignorância radical, esse "estar perdido", estamos a dar o primeiro passo em direção à liberdade? Pois "quem não sabe inventa", e quem não sabe nada tem de inventar tudo, tem de se inventar e inventar uma interpretação para o mundo que sabe que pode recriar de forma diferente a qualquer momento, pois nenhuma delas tem uma base preferível de todos os outros pontos de vista.


E ao darmos oportunidade ao inventar estamos também a abrir caminho a outras formas de justificar o que crio. Pois, se do ponto de vista conceptual só consigo especular sobre o que quer que seja, se não tenho provas de nada, se não pode ser o aço inflexível da lógica a tecer o modo como vejo o mundo, posso, e na realidade tenho de, procurar outra estratégia, mesmo que mais frágil.

Para além da razão usamos muitas vezes a emoção como base das nossas ações. Tanto a emoção como o pensamento se podem focar quer no meu interesse enquanto pessoa ou adotar um ponto de vista mais abrangente / transpessoal (aquilo a que Nagel chamou "the view from nowhere"). Ou seja, tanto podemos ver apenas o nosso ponto de vista como tentar ver o modo como as coisas são em si mesmas, independentemente de um ponto de vista particular. O sentimento, aplicado a essa forma de ver a realidade em si mesma, é o que chamo de sentimento estético e que está na base da arte e de toda a paixão pela realidade independentemente do que eu possa ou não ganhar com isso. Ou seja se gosto daquela rapariga pelo que ela me dá isso é o que se chama geralmente amor (ligado ao ciúme), se gosto daquela pessoa pelo que ela é, independentemente da relação que tenho com ela, isso já é uma forma de amor que está mais próxima da arte. É um gostar, uma admiração, um deslumbramento, desligado do interesse de ganho pessoal.

Esse tipo de reconhecimento da beleza pode servir para construir uma visão do mundo relativamente estável. Pois - tal como não consigo negar a sensação de azul apesar de ser impossível descrevê-la por palavras, ou explicar porque a vejo como azul (e não outra sensação) nem se ele é de facto azul (como eu sinto) ou não - também não posso negar que aquilo me parece belo apesar de não ser capaz de explicar nem o que é a beleza nem porque vejo aquele objeto como belo, nem se ele é de facto belo ou não. E no entanto tanto uma coisa como outra são uma evidência, uma evidência que escapa ao mundo das palavras e que, por isso mesmo, não consigo explicar nem a mim mesmo.

Há por isso um outro mundo, para além do que podemos descrever por palavras, e que vive dentro de nós de forma tão clara e distinta, tão evidente, como o mundo dos axiomas e suas deduções. Juntando todas essas "evidências", do que sentimos, do que percepcionamos, do que pensamos, já ficamos com uma visão mais clara e detalhada do mundo em que existimos. E talvez não seja assim tão difícil escolher um caminho apesar de não sermos capazes de explicar (nem a nós próprios) porque escolhemos ir por ali.

Também podemos, claro, usar uma perspetiva mais relacionada com o interesse do eu. Vou fazer tudo por esta pessoa enquanto ela me for fiel, por exemplo. Vou apoiar este clube mas não aquele. O problema é que esta perspetiva é bastante mais frágil: se a rapariga me trai o meu mundo cai por terra, se alguém me diz que o outro clube é tão bom ou melhor que o meu não o posso aceitar, apesar de uma parte de mim saber que é verdade! Ficamos muito dependentes do exterior e do contexto e mergulhados em contradições. Se, pelo contrário, amarmos as coisas por aquilo que vemos nelas em si mesmas, sem ligação com o que nos podem dar, não ficamos tão dependentes do contexto, a nossa visão é mais estável e muito mais clara ao longo da vida. Continuar a ter uma grande e verdadeira amizade por alguém que nunca mais vamos ver na vida é algo muito belo e confortante e faz sentido, por exemplo, como continuação de um grande amor ou amizade que, por qualquer razão, se esgotou.

Seja como for, quer se use uma perspetiva mais lúcida ou mais parcial, parece-me importante não mentirmos a nós próprios... mais fácil dizer do que fazer...

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Esclarecido?

É interessante pensar no tipo de pessoa que cada um de nós considera como pessoas esclarecidas:
Para uns serão os padres, para outros os cientistas, para outros os cépticos, para outros os artistas, para outros os ídolos do futebol, as top-models, ricos, ideólogos, etc. (Em geral é o que dá mais.)

No fundo ao considerarmos alguém como esclarecido  estamos também a afirmar o que achamos sobre o mundo e o que vale a pena fazer nele ou obter dele. Aqui vai o que eu acho sobre o que seria uma pessoa esclarecida:

Uma pessoa esclarecida sabe que nada se sabe do que é realmente importante: porque estamos aqui, de onde viemos, para onde vamos, o que devemos fazer...
no entanto está sempre disponível para aprender e abandonar ideias erradas, por mais apelativas que sejam.

Uma pessoa esclarecida sabe que o dinheiro é uma mera convenção social, uma ilusão para distribuir o trabalho pela sociedade...
no entanto age como se o dinheiro fosse real e é absolutamente honesto e exacto em todas as suas transacções.

Uma pessoa esclarecida sabe que a propriedade é uma mera ilusão,
no entanto respeita totalmente a propriedade alheia e pode estar até disposto a defender a que é considerada sua.

Uma pessoa esclarecida sabe que o amor é livre e infinito e não pode ser controlado,
no entanto ouve com respeito supremo quem diz "amo-te só a ti", porque em parte é verdade, embora o ti seja sempre imaginado, e finge não ver o tumulto constante do coração humano.

Uma pessoa esclarecida sabe que não sabe definir o belo,
sabe que não sabe definir o amor,
sabe que não sabe definir o azul (o azul enquanto sensação viva)...

Mas uma pessoa esclarecida sabe perfeitamente o que é o belo, o amor e o azul...

Uma pessoas esclarecida compreende as limitações das actuais sociedades humanas e do próprio pensamento simbólico, mergulha nelas e tenta melhorar... nem sempre consegue.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Se eu existisse...

Se eu existisse

Seria alto ou baixo
gordo ou magro...
Veria o mundo de uma certa perspetiva
estaria preso ao aqui e agora.
Teria um pensamento fixo
e as minhas mãos, teria mãos!,
estariam abertas ou fechadas.
Diria coisas
ou estaria calado.

Se eu existisse,
mesmo que voasse
ocuparia apenas um ponto de cada vez
e as coisas apareceriam como que a
rodopiar e a mudar todas
à medida que eu mudasse de lugar.

Se eu existisse
todo o Mundo
pareceria rodar em torno de mim

numa terrível ilusão de óptica
que me cegaria a tudo o que
não existisse em mim.

Se eu existisse...

não!

é uma hipótese demasiado horrível para contemplar...

Mesmo que eu existisse
haveria certamente piedade...
haveria certamente
uma parte em mim
que não existisse
dessa forma tão condicionada...

Pelo menos uma parte,
um bit,
um elemento,
de
Liberdade.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

O sonho do agente universal

Quando concentramos a nossa "luz" num aspecto singular da existência, seja ele a patinagem, a construção de gôndolas, a matemática, astronomia, dança, conversação, psicologia, pintura, pilotagem, actuação, etc... podemos ser tão "bons"... ou seja, podemos deixar que essa luz se expresse tão bem na realidade ao ponto de parecer quase tangível.

Quando vemos um espectáculo do Cirque do Soleil ou lemos o livro do Mandelbrot sobre objectos fractais, ou uma música ou filme daqueles mesmo inesquecíveis, é como se algo que já lá estava na realidade se descobrisse, se desvelasse, e um deslumbramento vem até nós. Afinal, é como o nosso sonho mais profundo já nos prometia...

Mas, quando as nossas capacidades forem diferentes, quando o homem finalmente se libertar dos limites genéticos, quando a sua inteligência e visão forem capazes de lhe dar as asas com que desde sempre todos sonhamos (animais)... seremos capazes de patinar, pintar, cantar e tocar como mestres, de pensar como génios e a nossa capacidade de expressão terá apenas os limites do próprio corpo.

Esse é o agente universal: aquele que só é limitado pela vontade.

Estamos ainda muito longe disso. Mas vemos aqui e ali, no artista, no cientista, no filósofo, no religioso, no humorista, aspectos do que essa Liberdade longínqua será.

Nota - escrevi isto ao abrigo do Antes Acordo Ortográfico. Como foi possível transferir a frustração pelas condições económicas em que vivemos para algo tão diferente como o Acordo Ortográfico, acho que sim, apoio. É melhor gritar pelo c antes do t do que destruir a pouca coesão social que nos resta em nome de moedas: a violência social é certamente trágica para o nosso tão pobre país que agora nem das colónias, nem dos fundos da UE, se pode alimentar (ainda temos alguns bodes expiatórios para explicar como chegámos aqui, no entanto). Viva a discussão do Acordo Ortográfico! Se nos der mais paz e nos ajudar a suportar melhor a pobreza. Um dia não iremos só comprar SmartPhones, carros, TVs e PCs, vamos (ajudar a) criá-los e vendê-los ao mundo inteiro! Nessa altura mostraremos ao mundo do que somos capazes, tal como hoje.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O que é que aconteceu à Amizade - quando os teus olhos e os meus são um só?...

Vamo-nos enredando em tantos papeis...

Às tantas esquecemo-nos que é só um papel... que eu não sou (só) isto que tu não és (só) aquilo...

Tu e eu somos um, mostrando diferentes coisas dessa unidade que em tudo se reflete, dando luz a toda a diversidade que somos e vemos à nossa volta. Somos pequeninos, vislumbres do infinito, partilhando tudo...

Mas há outras formas de viver... mais grandiosas, mais sós...

O que parece ser um excelente teatro de Marta Gautier "Vamos lá perceber as mulheres" e que revela de facto bastante sobre as relações homem-mulher, baseia-se no entanto numa dança, de "sedução", onde há sempre um espaço entre os dançarinos. Um espaço que gera o desejo, a cumplicidade, a ligação, mas onde não há verdadeiramente união, embora haja dança e comunicação.

Num mundo onde tu és tu e eu sou eu e sempre será assim!

http://www.youtube.com/watch?v=nJvfUUrq3wA

Os nossos olhares encontram-se, os nossos corpos também, mas as nossas almas, voam perdidas, algures numa terra distante, ansiando por lugares e sabores que só são pressentidos de relance... uma Liberdade que nunca chega a vir, que nunca chega a ser vivida...

Será uma vida a só? Duas vidas sós? Uma multidão de separações?

mas ao menos és Grande na solidão!! : )))

Well, good luck with that!!! : )


Mas, ao mesmo tempo que se revela essa dimensão da solidão também se fala do amor:
"O meu interesse pela psico­logia tem a ver com o aprender a amar melhor. Na minha vida já passei por muita coisa e descobri algumas verdades. Primeiro, o amor resolve tudo, depois, não há nada mais importante do que o amor. Quando tenho um desafio e fico angustiada a pensar se faço assim ou de outra maneira, se esquecer tudo e pensar apenas que vou amar, tudo acontece." (ler mais: link)

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