Mais ou menos no seguimento do mail da Sofia [na lista do Kung Fu To'A], um pequeno acrescento em relação à esquizofrenia. Apesar de não conhecer pessoalmente casos de pessoas esquizofrénicas parece-me que o processo é mais ou menos este:
Há muitas situações de “divisão” habituais em todos nós, tipo: “devia arrumar isto, mas deixo para depois”, “não devia ter este vício, mas só mais um bocadinho”. Em geral esta divisão entre dois coisas opostas que se desejam pode ser unificada acrescentando um adjectivo à pessoa: “eu sou viciado” por exemplo, exprime a ideia de que esta pessoa faria outras coisas que também deseja, não fosse o facto de estar “viciada” em algo. Ou então “preguiçoso”, que em geral significa que a pessoa gostaria de fazer outras coisas, não fosse a sua falta de vontade. Este tipo de considerações permite estabelecer de novo uma relativa unidade na (auto)concepção do indivíduo, apesar de, provavelmente, à custa da sua auto-estima.
Como é óbvio, a verdadeira unidade pressupõe um trabalho muito mais profundo, que envolve reflectir sobre o que é o desejo, e o que há de verdadeiramente desejável nesta vida. Mas essa é uma integridade reservada a poucos e que poucos procuram, pois dadas as actuais crenças partilhadas socialmente, envolve uma certa “travessia no deserto”,mais um descondicionamento. Envolve também um trabalho contínuo de integração do que é novo, de criar novas pontes e compreensões, uma visão simultaneamente mais alargada e radical.
No entanto, mesmo na desintegração relativa de pessoas que querem e não querem arrumar o quarto, que querem e não querem fumar, que querem e não querem sexo, que querem e não querem comer bolachas de chocolate, existe uma certa unidade superficial, conseguida com sentimentos de culpa e de repressão. Digamos que há um “eu superior” (em geral socialmente aceitável e louvado pelos eus significativos mais próximos) que reprime e condena os outros. Dessa forma, algo totalitária, garante-se um certo grau funcional ao indivíduo (pelo menos perante as suas obrigações sociais). E é isto que é, em geral, a “responsabilização” do eu pelos seus actos. “Se comes o chocolate... bla bla bla, condenações e tal...”.
Ora existem outros casos em que tal integração não é possível. Talvez o exemplo mais vulgar nas nossas sociedades seja o das relações pedófilas. Quando uma criança é forçada a ter relações sexuais, pode eventualmente gostar. No entanto este gozo do sexo pela criança é um tabu na nossa sociedade. Não há qualquer maneira de uma pessoa socialmente bem integrada na civilização ocidental actual poder pensar legitimamente que uma criança por exemplo de 9 anos pode ter gozo durante o sexo. Por isso, quando uma criança é levada a ter sexo com adultos e gosta, esse seu gosto não pode ser explicado facilmente como uma doença, ou um mero vício. A pessoa teria de ser moralmente má, um demónio ou algo assim, mesmo enquanto criança, para gostar de sexo. Ora, há medida que a pessoa vítima dessa relação pedófila vai crescendo e interiorizando a moral social, vai ficando cada vez mais dividida, entre a sua vitimização e correspondente culpabilização do violador, do pederasta, e o seu próprio gozo. Os primeiros (condenação) bem aceites socialmente, o segundo (o gozo) reprimido, mesmo perante si própria, até se tornar como que um sonho distante, algo que nunca aconteceu, que aparece por vezes como um pesadelo, lembrando uma outra vida.
Esta cisão já é ao nível do eu. Não há qualquer adjectivo que permita à pessoa unificar a sua experiência como, por exemplo, “sou boa esposa mas adorei o sexo com o meu próprio pai”. Não existe qualquer forma socialmente aceite de este “eu”, de esta “persona” existir, nenhum vício, nenhuma culpa, a unifica. Daí que se fragmente. Como boa esposa foi vitimizada pelo pai, no entanto como amante do marido tem de jogar com o seu próprio prazer, que indicia, que sugere, que remete, na sua própria interioridade íntima, àquele vício, incroyable, de outros tempos.
Penso que este tipo de experiência leva muitas vezes a casos de múltipla personalidade, onde os vários desejos se agrupam em torno de individualidades / personalidades diferentes, dado não caberem (todos esses desejos associados a “tipos” sociais tão diferentes) numa mesma personalidade.
Daqui à esquizofrenia é preciso pelo menos mais um passo. É preciso que o desejo associado à personalidade escondida seja forte, permanente – imprescindível à evolução ou estabelecimento da personalidade preponderante. Um outro exemplo: alguém que tenha sido fortemente reprimido pelos pais, pode ter querido desde criança libertar-se. No entanto, na sua vida até adulto foi construindo uma personalidade “aceite”, submissa. Mas, de tempos a tempos, surge a necessidade, que já vem de longe, de se rebelar. Mas essa necessidade não é de todo integrável na personalidade cultivada para o público exterior (familiares, amigos, local de trabalho, etc), nem para o interior (eu sou “asseado”, “respeitador”, “consciente”, “responsável”, etc). Deste modo gera-se um choque entre a personalidade assumida, e o conjunto de estímulos reprimidos até à inconsciência, de rebeldia. Daí que muitos casos de esquizofrenia sejam as palavras “porcas” que as pessoas dizem sem poder evitar, como se lhes fossem segredadas ao ouvido por outros eus, que as obrigam aos procedimentos, pensamentos e elocuções mais estranhas.
Se bem que a esquizofrenia seja um termo utilizado para cobrir muitas situações de diferente proveniência, parece-me que, em muitos casos, um caminho para uma “cura” possível seria no sentido de deixar a pessoa libertar esses “eus” escondidos, deixando que a personalidade se fragmentasse completamente, e fosse deixada, durante o tempo que fosse necessário, em estilhaços. Se bem que a pessoa original (que foi à consulta, ou que os amigos e familiares reconheciam) pudesse nunca reemergir, uma nova pessoa, mais saudável embora talvez não tão socialmente aceitável, iria eventualmente emergir, já capaz de integrar dentro de si episódios, vivências, desejos, etc, muito diversos.
É claro que, do ponto de vista social, isto é uma cura com um preço elevado, porque seria uma experiência que poria em causa a própria realidade e valor da persona. Por em causa a persona, mas em nome de quê? Da unidade, da visão íntegra? Porque é que isso haveria de ter valor, ou mais valor do que uma persona, na nossa actual ideologia social? Na verdade, a nossa sociedade baseia-se em pessoas, pessoas que têm ideias, que são de direita ou de esquerda, do Benfica ou do Sporting, etc. Mandar isso tudo pró carassas em nome da experiência, falar sobretudo de desejos, de prazeres, de aversões, em vez de pessoas. Falar de momentos em vez de vidas, de consciência e visão em vez de personalidade...
Isso é algo que não me parece que estejamos dispostos a fazer. Talvez a humanidade nunca o faça. Vivemos à superfície...
Em todo o caso, o que acontece ao nível do indivíduo tem um paralelo ao nível dos países. Há os ditatoriais, os separatistas, os em guerra civil, os que na verdade são mais que um país (caso da ex-Juguslávia), e depois há os mais livres, onde ninguém sabe muito bem o que se passa, e o Governo é um bocado fantoche e chato, onde nada se passa de verdadeiramente importante, e o que é vivo e vibrante se passa ao nível das pessoas, dos amores e dos natais... Fazendo o paralelo com o nível individual, também há aqueles para quem a persona é algo chato e pouco importante, e o que conta é a vibração de cada momento, único embora articulado com o mundo, com o todo!
Enfim, considerações um pouco loucas,
Eh eh ^_^ p