Bem! Tenho andado a escrever para um blogue chamado
Serpente Emplumada, nome explicitamente inspirado pelo seguinte texto de Pessoa: "
Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [passando]
para além de Deus". Como se vê facilmente é um projecto que alguns considerariam
ambicioso. Neste caso o que se passa é que ao publicar uma das minhas mensagens, sobre a não acção, e que consistia na mera afirmação do óbvio, isto é: "
Se baixares os braços... os elementos não te dissolvem porque nunca exististe..."
Ora parece que não só esta mensagem não foi compreendida por alguns comentadores como nem sequer o mais básico dos básicos que também a sustenta, isto é: «o que é existir e em que sentido podemos dizer que a alma é imortal?» Se uma pessoa não sabe isto, como pode querer viajar nos interstícios da Serpente, para lá de Deus??!? É como se estivéssemos num blogue de matemática avançada e alguém tivesse posto como gracejo este sistema a duas equações:
E viessem pessoas perguntar: «mas como se resolve isto?» Ora isto é o óbvio do óbvio!! Não cabe responder a este tipo de dúvidas num âmbito de um blogue de matemática tão avançada! Daí que, uma vez que essa explicação me parece tão
básica, mas mesmo tão básica, resolvi colocar aqui
o b+á bá da imortalidade da alma.
Do ponto de vista meramente físico compreende-se muito bem o que significa ser a matéria imortal, um princípio amplamente reconhecido ao ponto de hoje já passar despercebido (como tudo o que perdeu a polémica) e resumido na célebre frase
"nada se perde, tudo se transforma". Ora, detalhando mais um pouco, o comentário que ainda assim escrevi como resposta (e pelo qual peço já desculpa dado o seu carácter elementar) foi o seguinte:
"Vamos lá então: um quilo de feijões, uma multidão, um corpo físico, todas estas coisas são agregados. É evidente que existem, mas em que é que consiste a sua existência? Fundamentalmente na existência de cada uma das suas partes. Se eu pegar no quilo de feijão e o dividir em duas partes posso dizer que:"o quilo de feijão deixou de existir"O que num certo sentido é correcto. Mas também é correcto dizer que nenhum dos feijões deixou de existir.De forma mais geral podemos dizer que aquilo que são os constituintes fundamentais da matéria / Existência (que podem ser fermiões, bosões, cordas, energia e gravidade, etc, consoante as teorias) nunca deixam de existir.Agora alguém pode ter medo que o quilo de feijão deixe de existir, que se dissolva, que se dissipe. Ao que nós poderíamos responder: mas ele nunca existiu!! Não significa que não exista enquanto agregado, mas simplesmente que não existe enquanto algo de fundamental, é "aparência". Aquilo que o quilo de feijão sempre foi na sua essência não deixará de existir, não poderá deixar de existir, só por o pormos numa configuração diferente!"Pronto, em relação à matéria deverá então ser óbvio para todos que há dois significados para a palavra "Existir": um que designa o que permanece desde sempre no Universo, indestrutível, o fundamento, a base; e outro sentido de "existir" que se refere ao facto de certas articulações desse algo fundamental estarem aqui e agora perante mim (considerando este "mim" como outra mera articulação dessa realidade fundamental). No primeiro caso estamos a falar de algo logicamente indestrutível (já que é a
base de tudo), no segundo caso estamos a falar da minha relação (o falante articulado) com esses elementos, também eles relacionados entre si, e que vejo diante de mim. Tudo meras relações, relações instáveis e frágeis, é certo, mas entre uma e a mesma realidade fundamental!
É de notar que todas essas articulações mutantes, essas formas pelas quais a realidade fundamental vai passando são também indestrutíveis no plano da possibilidade. Ou seja, o quilo de feijões sempre foi possível desde o início da Existência (se é que houve um início para a Existência) -
a fortiori, se não fosse possível, nunca teria acontecido. Ou seja, tudo o que aconteceu ou acontece, desde sempre foi possível, precisamente porque o que é fundamental já o continha enquanto possibilidade, implicitamente, dentro de si! O que continuará a acontecer para todo o sempre. Tudo isto é trivial.
O carácter efémero da matéria é então uma ilusão que resulta de vermos a matéria como pratos e cadeiras e vasos em vez de a vermos como ela realmente é: fermiões e bosões (ou o que quer que seja fundamental) que se apresentam sob a forma de pratos e cadeiras e vasos. Os vasos e as cadeiras
são reais, mas é uma realidade emprestada, derivada, de uma realidade, essa sim, real em sentido próprio, e indestrutível. Para o cientista, ou amante do saber (não lhe chamarei filósofo porque muitos filósofos hoje parecem mais amantes da fama, do bom nome e do dinheiro) que veja para lá das aparências - do jogo de relações -, a realidade aparece-lhe como realmente é: eterna, imutável, jogando esse jogo de máscaras e de mudança, mas na realidade permanecendo sempre igual a si mesmo, mais que evidente (apesar de, aos olhos do macaco humano, para sempre invisível) no meio de toda essa aparente alteridade. Por isso em várias épocas se elogiou tanto a razão, porque ela é capaz de ultrapassar as limitações dos sentidos apontando-nos o caminho para ver o que é tal como é e não como apenas aparece.
Agora, falámos da matéria, mas, em relação à consciência, é a mesmíssima coisa. A única diferença é que, no estado actual do conhecimento científico, ninguém pode demonstrar experimentalmente qual a relação exacta entre a alma e o corpo. Estamos portanto no domínio
especulativo e teremos portanto de contemplar várias dessas especulações para ver se em todas elas se aplica à consciência a mesma imortalidade de que a matéria goza. Ora, de forma geral, dada a imortalidade da matéria, a alma fica naturalmente contemplada por essa imortalidade, pois a relação entre a
base e as suas aglomerações articuladas coloca-se a qualquer tipo de realidade, seja ela visível aos sentidos, ou não; esteja ela no espaço-tempo, ou não. A não ser que criemos uma teoria
ad hoc especificamente para nos convencermos de que a alma goza de algum estatuto especial que lhe garanta a mortalidade! (O medo é tanto que temos de dar plausibilidade aos nossos fantasmas criando teorias extravagantes que nos mostrem que sim, que podemos morrer!! Ai a dor, ai o medo, ai o drama! Quando a mais elementar observação basta para nos mostrar que tal é impossível. Mas que seria da Vida sem o medo da Morte!! Ai, até custa a imaginar, viver sem esses Fantasmas!! ;)
A demonstração é simples, mas como não sabemos (experimentalmente, cientificamente) qual a relação entre a consciência e a matéria teremos de considerar várias hipóteses especulativas. Note-se que há imensas possibilidades, o filósofo
David Chalmers tem textos muito claros sobre muitas dessas hipóteses (
este por exemplo).
Aqui basta-nos uma ideia muito geral, eis alguns dos modos segundo os quais a relação entre consciência e matéria pode ser vista:
(1) que ela é
idêntica à matéria (o chamado materialismo (reducionista ou de propriedades emergentes) - geralmente associado ao funcionalismo - eu sou o meu cérebro, etc.);
(2) que, não sendo idêntica à matéria, é um mero
epifenómeno de acontecimentos materiais - isto é: a matéria influencia a mente, mas não o contrário; ou ainda: tudo o que acontece pode ser inteiramente explicado por uma descrição meramente física do mundo, apesar de que essa explicação, completa do ponto de vista causal, não implica a descrição de estados conscientes (dualismo com interacção de um só sentido, também pode ser associado ao funcionalismo, ou a outras teorias);
(3) que tem de facto poderes causais, podendo influenciar o mundo (por exemplo aproveitando os graus de liberdade que os sistemas físicos proporcionam, ao nível atómico e em certos sistemas onde esses graus de liberdade são amplificados para níveis macroscópicos, sistemas dinâmicos, caóticos, fractais, etc. - ninguém sabe se o cérebro será um deles). (dualismo com interacção recíproca entre mente e matéria)
(4) que tanto a consciência como a matéria são dois aspectos de uma realidade mais essencial e que se manifesta como um ou outro (monismo - também por vezes associado ao funcionalismo e/ou pampsiquismo);
Pronto, poderíamos colocar muito mais hipóteses, mas estas já devem chegar para o que queremos:
Ora o único caso em que podemos imaginar que a alma é
mortal é o terceiro, ou seja aquele em que supomos que existe uma espécie de alma, um fantasma, que é o sujeito, independente do corpo e que o influencia. Ora aqui podemos de facto imaginar que esta alma pode desaparecer, não tanto com o fim do corpo mas em qualquer momento, pois de facto não sabemos o que lhe deu origem nem o que a sustém. Talvez ela possa desaparecer num momento qualquer (ficando o corpo sem vida ou num estado vegetativo), ou talvez possa sobreviver à morte do corpo durante uns cinco minutos e depois de ser julgada, plof, desaparecer. Na verdade podemos imaginar qualquer coisa em relação à mortalidade desta alma, pois estamos a falar de algo que não conhecemos e, portanto, é possível que se comporte de todas as maneiras que quisermos imaginar. Ou seja, a possibilidade que temos, neste caso, de achar que a alma é mortal, deriva do facto de não sabermos nada sobre ela e sermos por isso livres de afirmarmos o que bem quisermos, mesmo a coisa mais bizarra.
Por outro lado vivemos num mundo perfeitamente imortal, onde todos os elementos básicos, as forças, as partículas, as leis da física e do pensamento, são, tanto quando podemos ver, imortais. No entanto, se colocamos como hipótese uma entidade "a alma" sobre a qual nada sabemos, nem em relação à sua origem nem à sua natureza, é evidente que podemos pensar que ela é mortal. Mas reparem que aí a alma é a excepção, não a regra. A regra é a imortalidade: tudo o que é fundamental é imortal (tanto quando podemos observar no estado actual do conhecimento). Note-se ainda que fomos nós que introduzimos a mortalidade na teoria à custa da ininteligibilidade, talvez porque o nosso medo de morrer é tão grande que queremos à força torná-lo plausível inventando todas as razões para tornar a morte plausível, mesmo quando tudo à nossa volta (pelo menos do ponto de vista físico) é manifestamente imortal nos seus fundamentos só se fazendo e refazendo nas suas articulações / aparência.
Que nas outras hipóteses a alma é claramente imortal é fácil de ver: por exemplo no materialismo (quer seja reducionista ou não). Se eu sou idêntico ao meu corpo, ou ao meu cérebro, então existo, como
possibilidade desde o início dos tempos. Ou seja desde que o Universo existe que as leis permitem uma configuração da matéria que resulte exactamente no que eu sou aqui e agora. Essa possibilidade vai continuar a existir no momento seguinte. Por exemplo, neste preciso momento, aquilo que ainda agora fui já morreu e, no entanto, continua a existir como possibilidade apesar de nem eu próprio poder reconstituir o que fui, em todos os detalhes, nem na minha memória nem na minha presença. A morte do sujeito enquanto entidade
complexa (porque, como vimos a sua base é indestrutível) acontece momento a momento. Não há um único momento que passe em que eu não morra, e em muitos desses momentos renasce um sujeito algo semelhante, ora mais alegre, ora mais triste, ora com um pensamento, ora com outro, tal como uma Fénix sempre a consumir-se e a renascer no fogo do Tempo. A morte é o fim desse renascer do sujeito social, outros renascimentos virão, de cinzas, de minhocas, de árvores, etc. Mas o renascimento que nos interessava a nós, enquanto sujeitos sociais, portadores de nome e bilhete de identidade, foi-se, e ficamos tristes pois o nosso nome e BI será também posto nas chamas mais tarde ou mais cedo. Mas note-se que a Fénix que renasce
não é a mesma Fénix. O meu nome é Pedro (ou Luar, se quiserem) e as pessoas continuam a chamar-me Pedro, mesmo que passe um segundo, um dia, um mês, uma década. Mas não se trata do mesmo sujeito. Isso é sobretudo notável em acidentes, doenças cerebrais (acidentes, tumores, etc) onde um sujeito, no prazo de horas muda completamente
de figura! A nossa ilusão de permanecermos o mesmo ao longo dos segundos é o que nos traz também o medo da morte. Mas é uma ilusão tão ridícula e óbvia que basta a mais trivial constatação para a desmontar. Afinal, quando tinha cinco anos, o que permanecia igual em mim? E quando estiver doente e senil, o que permanece igual? A ilusão social mantida pelos nossos nomes, pelas profissões, pelas relações familiares, pelas
posses (de casas, de animais, de ideias, de clubes, de estilos, etc), leva-nos a acreditar nesse amontoado de fundamental, sempre mutável, como algo que continua. Mas a única coisa que continua é o que não tem princípio nem fim. Neste sentido nós não podemos morrer porque desde sempre estamos mortos, nunca chegámos a existir. Aquilo que em nós de facto existe e Vibra e É, e está na origem profunda da Consciência, isso É momento a momento, imutável, indestrutível, indecomponível. É aí que Existimos, e aí sim, existimos realmente, é a Vida, é a mesma Vida em configurações diferentes. Por isso, tal como distinguimos dois usos da palavra "existência" para a matéria, temos de distinguir também duas formas em que podemos perspectivar a existência do eu: o eu como agregado é absolutamente diferente nas suas relações internas e externas a cada momento, mas, na realidade que não se mostra aos sentidos, cada eu é absolutamente igual, indistinguível e indestrutível naquilo que nele é o Fundamento ou Fundamental.
O facto de nem materialistas nem idealistas considerarem esta tese óbvia e trivial mostra bem o peso que as ilusões sociais têm em nós, criando um desejo, melhor seria chamar-lhe estultícia, para que o "eu" social permaneça, quando ele na verdade não passa de máscara do que realmente somos, do tudo que é e não pode deixar de ser: a
base da Criação. Pois tudo o que existe são aspectos ou facetas de algo imortal.
Pronto, isto segundo a hipótese do materialismo ou da identidade entre consciência e matéria. O mesmo se passa se considerarmos qualquer outra teoria onde a consciência tenha uma relação
inteligível com a base, com a realidade eterna, pois se uma é manifestamente imortal (por exemplo a fermiões e bosões), teríamos de recorrer a grandes artifícios para tornar plausível a ideia de que a outra era mortal nalgum sentido importante.
Ora é claro, poder-se-á objectar: os fermiões podem ser imortais, mas a canela não existe desde sempre nem para todo o sempre. Tudo o que vemos à nossa volta, a atmosfera, as rochas, o mar, os animais, as civilizações, os livros, as plantas, o próprio planeta, tudo isso teve um princípio e terá um fim. Mas, no sentido mais real e fundamental, como já expliquei,
a canela nunca existiu, nem nenhum composto, ou seja, ela
aparece aos nossos olhos como canela porque os olhos do corpo também são compostos e têm uma certa escala espacial, temporal e computacional que só lhes permitem detectar
diferenças composicionais e a uma certa escala; mas, de facto, a canela, como realmente é, consiste apenas na realidade fundamental (fermiões, bosões ou o que quer que seja) articulada ou configurada de uma certa maneira. A prova mais evidente que temos de que essa realidade permanece igual e imutável reside na
universalidade das leis da natureza, pois que outra coisa poderia explicar que as leis da natureza permanecessem imutáveis se não fosse a própria imutabilidade do que lhes dá origem, ou seja, a própria Existência. Por isso, tudo o que muda é aparente. De facto, na realidade, não há mudança e somos reconduzidos ao poema de Parménides, segundo o qual só os humanos cegos e bicéfalos podem pensar que o devir acontece. A permanência que o cientista consegue ver no mundo da alteridade é a mesma permanência que o místico vê na alma perante os ciclos da vida e da morte. Centrando-se no que não muda, um usando o olhar do corpo (ampliado por microscópios, telescópios, etc), outro usando o olhar da alma (ampliado por uma grande sede de
verdade, coragem e autenticidade), conseguem ambos ver o mundo eterno que é mais que evidente em cada uma das formas que iludem os incautos.
Resumindo, como realidade composta nunca chegámos a existir, como realidade fundamental vamos existir para todo o sempre: as nossas personas, os nossos desejos, crenças, medos, ansiedades, relações, objectivos, etc, são como a canela. Configurações momentâneas do que realmente existe. Cada uma dessas configurações (que nascem e morrem a cada momento: o Pedro do segundo 19 não é igual ao Pedro do segundo 20, essa persona morreu e nasceu entretanto!) existe desde sempre e para todo o sempre
como possibilidade deste universo. Não é por esta canela deixar de existir que a canela "em si" (pareço o Platão) deixa de existir, enquanto possibilidade (ou forma platónica). Como é óbvio o eu de há 20 anos não é o mesmo eu de hoje ou do de aqui a 20 anos. Por isso quem acredita em alminhas que vão para o céu terá dificuldade em compreender se o Sr. José, morrido aos 93 anos vai chegar ao céu como menino reguila, como adolescente apaixonado, como chefe de família ponderado, como idoso sábio ou já senil. Será julgado exactamente por ser exactamente o quê? Se foi tantas pessoas ao longo da sua vida, a esmagadora maioria das quais já ninguém lembra incluindo ele próprio?
Quais as consequências éticas e estéticas da nossa imortalidade? São de dois tipos: por um lado somos inteiramente Livres para abandonar as nossas máscaras, os nossos nomes, as nossas profissões, o nosso passado, a nossa memória, os nossos tiques e tudo o resto que nos torna indivíduos reconhecidos aos olhos de outros. Não é por isso que iremos morrer ou deixar de ser quem somos
realmente. Por outro lado também não faz sentido tentarmos ser de
uma certa maneira ou de tentar que as coisas sejam de uma certa maneira, pois isso também não nos fará mais nós próprios. Não é por me continuarem a chamar de Pedro que serei mais real do que se agora me chamarem Afonso, não é por continuar a ser rico que continuarei a ser eu. Eu sou Eu, aconteça o que acontecer, na vida e na morte, como ser humano senil, como folha largada ao vento, como génio, como louco, como criança indefesa, como ditador poderoso. Então, o que fazer? Parece que nada vale a pena!!! Caímos por acaso numa aporia? A minha resposta,
já a dei no tal blogue da Serpente e é mais ou menos esta (esclareci melhor uma passagem ajudado por um comentário do Tamborim) -
"
É claro que nada vale a pena. Daí o conceito oriental da "não-acção". Não agir significa exactamente isso. Quanto a mim, é o passo seguinte do existencialismo francês (apesar de ter sido dado antes, no Oriente). Porque, enquanto no existencialismo ainda estamos perante o choque, o incrível choque, da ausência de sentido da vida, e ficamos como que parados, sem saber o que fazer perante esse nada nadificante, no oriente já se tinha dado mais um passo com a técnica da não acção. A técnica da não acção diz que, se nada vale a pena, então deves deixar as coisas fluir, sem empurrar nem para a direita, nem para a esquerda, nem para trás, nem para a frente. Quando isso acontece, acontece o verdadeiro desapego, tu desapareces mas todo o mundo nasce em ti...É o Existencialismo levado até ao extremo, e que renasce, mais do que como um Idealismo: como absoluta Liberdade e Transcendência. Ou seja, da tonalidade desesperada de um "estamos condenados a ser livres" chegamos à exuberância em êxtase do "Sou LIBERDADE!"Repara que, se tivesses feito isso, se tivesses realmente feito isso de "baixar os braços e deixar que os elementos nos dissolvam" terias descoberto que eles não te dissolvem...Eles começam a dançar e a cantar dentro de ti, feitos malukos!! Feitos eternos malukos!! E dessa dança ou do seu sabor já não escapas mais, enquanto estiveres lúcida!Experimenta!! A vida NÃO faz sentido, não há saída, não há salvação, não há Buda, não há iluminação, não há caminho: NADA, mas mesmo nada, vale a "pena"...É claro que isto é na teoria, na prática, ao estar cheio de dores de barriga, não consigo pensar em mais nada... ^_^PS - também devíamos dizer que "tudo vale a pena". Bolas, temos de escrever um outro texto sobre isto..."
Aqui a razão perde o pé. De um ponto de vista meramente racional pareceria que, se tudo é de igual valor, então deixa de haver sentido, caminho. Mas a razão é a tal que só consegue ver ou a causa ou o acaso. Não consegue contemplar o disforme, aquilo que nem tem causa nem é por acaso. De facto, ao dizermos que tudo é igual, que não sou mais por ser Pedro ou vagabundo, por viver ou morrer, pareceria que então era tão fácil deitar-me à morte como continuar a viver. Mas
na prática não é isso que sucede: da mesma maneira que não conseguimos computar certas equações da electrodinâmica quântica, pois aparecem infinitos, também não conseguimos tornar inteligível que um Nada tenha tanta coisa lá dentro. Do ponto de vista racional é absurdo, e, se fôssemos guiados exclusivamente pela razão, teríamos de nos programar segundo o acaso: seria o fim da ética e de todo o comportamento moral. Mas o que é certo é que, quando nos deixamos inebriar por esse Fundamento não-relacional, quando deixamos cair as máscaras, quando deixamos o Pedro, o Paulo, a Regina, a Manuela, e passamos a ser apenas esse incondicionado, para quem a morte já não é senão absurdo ridículo, a vida renasce em nós. E em vez de contemplarmos o Absurdo que deprimia os franceses, imersos em toda aquela etiqueta, descobrimo-nos como "Sou LIBERDADE"! E nada há que eu conheça de mais Feliz, mais Criador, mais pujante e Transbordante de Bonança do que esse estado.
Mas isso já ultrapassa a minha razão, isso tereis de o experimentar. O cego só verá a cor do Sol quando abrir os olhos à luz, mas para isso precisa de compreender que a cegueira não é virtude, o que é difícil, pois toda a gente o tratou, desde que se lembra, por Cego: «Sr. Cego, Dr. Cego, Sua Excelência Doutor Cego, pai Cego, irmão Cego, empregado Cego, patrão Cego, amante Cego, e até, ao que tudo se resume:
meu Querido Cego!!! E agora, deixar isso tudo, só para olhar para o Sol, e apreender apenas aquilo que é óbvio: que não existo, que nunca existi? A troco de ser Feliz! A troco de cair no Abismo? Nãaa, prefiro a segurança das minhas relações, é certo que terei sempre medo da morte, mas também é certo que saberei sempre onde estou, e o sítio para onde me queres levar "não tem longe nem idade". Nãaaa...» Eis o discurso do Cego, imerso em Sol, criado pelo Sol, mantido pelo Sol, e cujo Amante, Extremo, desde Sempre, é o Sol...
eheheh!!!! Que texto este! Que Gozo me deu! ^_^
(PS - note-se que há claramente muitos aspectos que ficaram incompletos, por exemplo o estatuto ontológico da possibilidade e da actualidade e também dos conjuntos (terão alguma existência própria? e como poderemos determiná-lo com certeza?), outra questão por resolver será a da (in)existência de um eu profundo (não o eu social, é claro, esse sim claramente ilusório) ao nível fundamental. Mas para esta última questão gostaria de conseguir expressar uma resposta de meio termo do tipo é e não é verdade que um eu fundamental existe, o que parece impossível logicamente. Outro aspecto que pode não ter ficado claro é o da relação entre o dualismo e a ininteligibilidade que conduz à mortalidade da alma. Esclarecendo melhor: não é o dualismo em si que conduz à mortalidade da alma. Podemos ser dualistas, trilistas, quadrilistas, etc, e interaccionistas, que em nenhum caso haverá qualquer dificuldade em relação à imortalidade pois a mesma relação entre base e composto, entre origem e figura se mantêm. Aquilo que verdadeiramente está na origem da crença de que a alma pode ser mortal é a ininteligibilidade da própria concepção de alma, concepção que normalmente é mais originada pelo medo do que pela razão ou pelo desejo puro de verdade. Trata-se talvez daquilo a que McGinn chama "pensamento mágico" e que não é senão a súmula dos nossos medos. Note-se que as teorias dualistas foram propostas tradicionalmente no seio de comunidades religiosas onde interessa sobretudo manter os fiéis crédulos e medrosos, na ilusão de que há algo a temer e algo a alcançar. Daí que o medo da morte (tal como a condenação do que não conseguimos evitar - sexualidade, egocentrismo, luxúria, etc - para gerar a vergonha e desamor) seja essencial, não só para a religião mas para todos os sistemas que procuram ordenar a mente humana, quer a nível de grandes grupos, como a política e as tradições (nacionalismo, bairrismo, clubismo, etc) quer a nível mais particular (relações amorosas, familiares, etc). Em todos estes casos o medo é fundamental, e o medo da morte, gerado pela premissa de que o eu social existe no mesmo plano do que o que somos verdadeiramente, é sem dúvida um dos mais generalizados. Mas mais uma vez sublinho, é um medo que se sustenta à custa do ininteligível. Se pensarmos claramente dificilmente conseguiríamos conceber que a vida em si seja mortal, tal como nada de fundamental o é.)