quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O Oceano vestindo Flores

Between My Country - and the Others -
There is a Sea -
But Flowers - negotiate between us -
As Ministry.
Emily Dickinson

(in, Tratado de Botânica, de Joana Serrado)


Vivemos num Oceano, um Oceano de Energia/Matéria, sabe-se lá... mas ao nível fundamental é tudo o mesmo, as mesmas ondas/partículas, cada parte de mim é feito da mesma coisa que cada parte de ti...

Em toda a parte o mesmo Oceano, contando a mais Bela história do Mundo...

E no entanto isso que está por toda a parte, em cima, em baixo, dos lados, não só não pode ser visto pelos olhos ou por qualquer outro sentido (a escala é outra), também não pode ser dito. Não é por acaso, é que este cérebro não foi feito para detectar quarks mas patos, nem para compreender equações diferenciais mas sorrisos e pauladas. Nós somos macacos que tentam ser Deuses, mas aquilo que os nossos sentidos e mente nos mostram é incomparavelmente diferente do que existe.

Olhamos para uma mesa e não vemos campos electromagnéticos, olhamos para uma pessoa, não vemos o seu passado, as suas angústias, o seu sistema imunitário, a história da sua criação na barriga da sua mãe. Vemos uma fatia, finíssima, da realidade.

A nossa construção enquanto seres vivos, o programa que nos permite pensar, ver, falar, sentir, dar as mãos, sorrir, tudo isso acontece a uma escala em que o Oceano é invisível - a Realidade em si mesma, passa-nos ao lado. Só com um grande esforço, de transcender as nossas limitações de animal terráqueo, podemos compreender o que temos em comum com as estrelas.

Quando comunicamos com outros pode ser extraordinariamente difícil passar essa mensagem de que estamos num mundo muito para além do Paraíso (well beyond Paradise). Zangas, máscaras, simplificações, uma vontade de se agarrar a um modelo de vida onde nós (o eu) tem lugar, querer que as coisas sejam de determinada maneira, tudo o que a sociedade transmite de pais para filhos sobre valores, ambições, medos, pactos e alianças, vergonha e medo, tudo isso é como areia lançada sobre o mais belo quadro.

Neste contexto falar do oceano é como andar nu na rua. Toda a gente anda nua debaixo das roupagens, mas é como se esse corpo nu não existisse. Como se as vestes não simplesmente o tapassem mas obliterassem, como se fosse uma mentira, uma ilusão. Se, em vez de irmos no conto do vigário dissermos às pessoas: "mas eu tenho uma pilinha, queres ver, está aqui, está até em bom estado de conservação" não adianta. Ninguém vai perceber, vão achar obsceno, sujo e triste. E isso não é verdade. Porque as próprias roupas surgiram para salientar, administrar e preparar para a Beleza do encontro dos corpos. A pila é bela, tal como todos os seus pintelhos, cuidadosamente dispostos como que a deixar o foco para o lugar central. Mas ninguém o compreenderá, pelo menos não da maneira real e simples da nudez das flores ou do mar.

Da mesma forma se dissermos às pessoas que a vida é uma coisa sem importância nenhuma, que podemos morrer ou viver, que há biliões de outros planetas e aventuras a decorrer, que a minha vida podia acabar já aqui, etc, não vai parecer belo. O carácter alucinado de mostrar o pénis em praça pública é o mesmo carácter alucinado de falar sobre a leveza da sobrevivência. Toda a gente sabe, mas esconde-se, porque não há estruturas mentais, sociais, cognitivas, que permitam integrá-la no seio saudável deste homem-macaco.

É por isso que este poema da Emily faz todo o sentido, porque somos como nações, cada um de nós, com a nossa história, ideais, linguagem própria, e quando nos dirigimos a outro não é possível irmos de imediato nus. Porque isso seria mentir. Se mostrarmos o pénis será como um acto de agressão ou de disponibilidade, não como um menino que simplesmente não vê porque se esconder (esconder o quê de quê?). Se falarmos sobre a irrelevância da vida será visto como uma depressão ou excentricidade, quando na verdade é apenas a integração de tudo o que somos em algo mais vasto e que também somos (mas de outra maneira).

A verdade é bela, e sempre que dissermos coisas feias podemos saber, só por aí, que estaremos a mentir. Daí que as flores sirvam de nossos embaixadoras. Elas também não dizem toda a verdade (o que parece impossível sequer de imaginar a este homo sapiens), não dizem todo o mar, não falam assim tanto do Oceano que todos somos, mas também não se afastam tanto do que é mais essêncial, que é a sua Beleza. O que seria do Oceano se não fosse Belo? É impossível de imaginar. As flores permitem-nos duas coisas: em primeiro lugar manter a integridade, pois as flores não atacam, mostram sem forçar, permitem e só por aí se vê como são parecidas com o Oceano. Em segundo a sua beleza é uma guia da verdade, pois se nem tudo o que é atraente é verdadeiro, tudo o que é verdadeiro é Belo. Em suma, podemos ser o infinito, mas já que temos de escolher máscaras que nos representem, que sejam o mais verdadeiras possíveis, que sejam flores.

O Amante, esse Infinito vestindo Flores...

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

a cada gota de água, a cada grão de areia

Ne me quitte pas, ne me quitte pas, ne me quitte pas...

Vou para casa... e tu?

Dois amigos, de amizade tão longa que já esquecida, encontram-se. Diz um para o outro, «para onde vais?» «Vou para casa, e tu?», «também...»

«Então vem daí que eu dou-te boleia!»

Que gesto tão simpático, e generoso; e lá vão os dois amigos, caminhando juntos, cantarolando cada um a sua melodia, até que repara um: «mas este não é o caminho de casa!» «Claro que é!» responde o outro. «A minha casa fica em altas montanhas, onde o sol não chega sequer a alumiar, de tão altas que são», «pois a minha fica no mar mais profundo, alimentando os seres mais exóticos, na diversidade de tudo». Ahhhh!!

Afinal não te posso dar boleia, meu Amigo, autêntico Irmão,

então deixa-me voltar à estrada, encontrar-nos-emos um dia, e senão, estarás sempre no meu peito, como chama acesa e viva!

Entretanto param e à beira da estrada, está um vagabundo... «Olha lá, perguntam, vais para casa?»

e ele responde:

«Não tenho casa, vivo em todo o lado, aberto a todas as casas mas não pertencendo a nenhuma, aceito todas as boleias mas em nenhum sítio permanecerei..."

Os amigos deixaram o vagabundo à beira da estrada, pois o caminho de cada um era difícil e perigoso e exigia de cada um toda a força, coragem e lucidez de que fossem capazes. Not for the faint hearted...

He remained, as if fainted... as if nothing but a faint hearted man...

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

O Mundo...

porta aberta para o Infinito...

(infinite Worlds)

(infinite Complexity)

- Mas dizes que está sempre aberta?
- Sempre, sempre!
- Mas às vezes há obstáculos?
- Só a nossa vontade.
-Tás a gozar, um miúdo em África a morrer à fome, e tu dizes: «ah! pois, mas ele tem a porta aberta para a eternidade» ou infinito ou o que quer que seja! É ridículo, mais, é quase um assassínio, pois toda essa filosofia do tipo nascemos no melhor dos mundos possíveis, só leva a uma desresponsabilização grosseira que, numa perspectiva de mínimo bom senso, só poderá ser entendida como o cúmulo do mais abjecto egoísmo.
- Depreendo portanto que não gostas?
- Tás a gozar, tu és um assassino, e em massa!
- Sou um assassino de spaghetti sem dúvida, mas, em termos práticos, que ajuda é que já deste que eu não tenha dado?
- Ah! Mas não é bem isso que está em causa, eu ao menos sinto-me culpado por não ajudar mais, e dou donativos e ajudo os pobrezinhos e o caraças. E custa-me, muito, podia estar no quentinho de casa! Enquanto tu, ..., pfff, vá-se lá saber o que fazes nos tempos livres com essa filosofia maluca!
- Eu escrevo, acerca do Infinito...
- Pfff, bem sabia, só inutilidades... e os tipos em África a morrer!
- Mas se te sentes mal porque não vais lá ajudar?
- O problema não sou eu, és tu! Não fujas com o rabo à seringa.
- Ok, então vejamos, és Livre ou não?
- Se tiver meios para fazer o que quero, se ninguém me impedir, sim!
- Então uma pessoa viciada que sinta necessidade de cocaína, se tiver meios de a tomar, se ninguém a impedir, é Livre sempre que a toma!
- Bem, mas nesse caso pode ser um viciado, não consegue evitar desejar a droga. Por isso não é livre, o vício impede-o de ter a opção de não desejar aquilo que o vicia.
- Então, o facto de termos todas as condições materiais de concretizar o nosso desejo e ninguém nos impedir, não significa só por si que sejamos Livres. Pois teríamos de saber se esse desejo foi escolhido livremente, ou não é assim?
- Acho que sim, mas não estou a ver onde queres chegar...
- É que me parece que quase tudo o que desejamos... fomos ensinados a desejá-lo.
- Hummm... o gosto da cerveja ainda vou lá, aprendi-o; o Benfica, talvez, ensinaram-me; agora a minha miúda, ou a cor azul, isso foram coisas minhas...
- Foste tu que decidiste desejá-las?
- Quer dizer, o desejo acontece, ninguém decide desejar, ou se decide, até pode nem dar certo. Tantas vezes que a gente quer desejar trabalhar, quando na verdade queríamos era ir à praia.
- Exactamente, os desejos acontecem, surgem vindos da vida, propostos pelas iguarias que o nosso corpo observa, ou de que nos falam, ou de actividades que nos habituamos a fazer: telemóveis e computadores, viagens e pessoas, conquistas, fama, poder, família, reconhecimento, desportos, etc... Tudo isto são coisas que vão despertando o desejo em nós e nós corremos atrás delas, por vezes como loucos, mas isso não quer dizer que sejamos livres só por as conquistarmos...
- Ok, isso é um bocado estranho, mas mesmo que fosse assim, o que é que tem a ver com o que estávamos a falar?
- É que, se pudesses escolher o teu desejo, o que quererias desejar?
- O quê? Sei lá! Mas onde é que queres chegar?
- Eu comecei por dizer que a única coisa que nos impede de atravessar a porta sempre aberta para o infinito que o Mundo é (e nada mais é do que isso), é a própria vontade. tu começaste a falar de comida, de saúde, de bens materiais, mas nada disso é o infinito. O facto de eu neste momento não poder encher o meu carro de gasolina não significa que me seja impossível viajar até ao infinito. Como disse, viajar até ao infinito só depende de uma coisa, só tem um combustível, e esse combustível é querer ir até lá. Mas normalmente nós queremos muita coisa, sexo, companhia, aceitação, fortuna, aventuras, deixar a nossa marca no mundo, queremos tanta coisa que esse desejo de infinito vai ficando lá atrás, um pouco perdido na multidão de outros desejos que também temos.
- humm... (faz um olhar inteligente e pensativo enquanto pensa: este gajo é maluco!)
- É que há uma condição para passar a porta, ou melhor a quantidade infinita de portas, que nos separam do infinito. Essa condição é que temos de ir inteiros. Não pode ficar nenhum bocadinho a desejar o sorriso da cara sardenta, a conversa ao luar, sob as estrelas, a felicidade da família. Todas essas coisas são desejos autênticos e legítimos, que nos ensinaram a ter, que aprendemos a ter ou que descobrimos que temos. Mas, se tivéssemos podido escolher o nosso verdadeiro desejo, se tivéssemos podido escolher livremente, livremente, livremente!, o nosso desejo, certamente que escolheríamos desejar algo inominável, a própria raiz da Felicidade e da Vida, pois aí está, concentrado, tudo o que procuramos noutros sítios dissolvido. E nenhuma fome, dor, ignorância, etc, nos poderia afastar dessa raiz se a desejássemos inteiros. A porta está sempre aberta, e tudo o resto tem apenas a importância que lhe quisermos dar.
- Olha (entretanto tinha perdido o fio da conversa), deixa lá isso, tu não és nada mau rapaz, até és porreiro, às vezes, és só um bocado confuso, mas vem daí que eu pago-te uma bejeca!
- Não costumo beber alcool, fico tonto.
- É pá (ainda por cima é esquisito), tá bem, um sumo de laranja! Pode ser?
- Fixe, ainda bem que ofereces, ando um bocado teso! Obrigado!
- De nada pá, de nada (és um bocado maluco, lá isso és!). Vem lá daí que isto das filosofias faz-me doer a cabeça!

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Nietzsche e o Super-Homem da bicharada

Eu não gosto do logro de Nietzsche, esse tipo mimado pela mamã e pela irmã, acalentado como um génio pelos colegas da faculdade, perdido primeiro pelas vénias e depois pelo desprezo, e que, em nome de um ideal de super-homem fantástico, largou tudo para viver num quarto exíguo, longe de todas as mulheres, de todos os prazeres, de todas as viagens, de toda a Vida... para escrever nos seus pequenos escritos as grandes virtudes desse super-homem da sua imaginação fértil que, entre outras coisas, seria capaz de ter sexo que não fosse pago... Uma espécie de alter-ego ficcionado para sustentar o escritor, que tinha de ser carregado (emocionalmente e também literalmente, no final da vida), pela irmã e pela mãe...É como se alguém que não sabe nada de Kung Fu se pusesse a falar sobre como seria ser um grande mestre e então inventa grandes passos de mágica, vôos, força incomensurável, um super-homem ao estilo da disney. E pronto, ficamos todos com a ideia do que é um super-homem: algo inderrotável, mas inventado, impossível, que até podemos tentar pôr em prática (há quem fale dos nazis, ou dos putos que andam vestidos com capas!), ou comentar apaixonadamente, que sim, que até tem coisas boas (alguns cristãos), mas esquecemo-nos do mais importante: é de papel!! Aquilo na realidade não existe nem podia existir!! Existem de facto artes marciais, mas não têm grandes vôos, nem força incomensurável: alimentam-se de pequenas coisas, de subtilezas e um combate de alto nível raramente é espectacular, a não ser para o olho bem treinado aos mais ínfimos pormenores.

Assim também é, digo eu, com esse "super-homem" pelo qual Nietzsche tanto ansiava, sobretudo na sua pessoa. O super-homem é como aquele tipo alto, bem formado, que impõe o respeito e ao qual ninguém é capaz de se opor, na sua hereditariedade tem todo o mundo como o pai, que esperam por ele como o filho principal, ao qual todos os outros se devem dobrar, e devido ao qual todos os outros fazem sentido, como se fossem rascunhos de uma obra maior! Sim, esses super-homens que todos os homens pequenos e medrosos se gostam de imaginar a ser.

Esta estupidez cantante é o que passa por super-homem, quando, no fundo, se trata apenas dos medos de um escritor angustiado consubstanciados na imagem de um herói que o viesse salvar da triste vida em que se encontrava. Senão vejamos, se existisse de facto um homem superior, ele veria certamente o valor de toda a vida, amaria a vida e seria essa paixão e deslumbramento por tudo que o guiaria. Mas isso não o levaria a desprezar ninguém, muito pelo contrário; nem o levaria a ter menos compaixão, a ser menos subserviente, ou a largar a sua própria vida em nome da de outros. Pois a verdadeira grandeza não é a daquela pessoa, da máscara (essas têm todas o mesmo valor, quer seja a do presidente ou a do vagabundo - aos olhos do mundo) mas a do que a guia e rege, do que a faz nascer todos os dias e brindar o momento com toda a sua presença. E esse "princípios" (à falta de uma palavra melhor), ou essa Vida que o anima, existe em tudo e todos. A grandeza faz parte da montanha, da criança que chora ou ri, da mulher rica ou pobre, do peixe pescado mas ainda vivo, a apresentar na feira mais tarde, como cadáver, e em tudo nos podemos deslumbrar, tudo podemos amar, em tudo nos podemos perder de paixão.

Se o Friedrich tivesse realmente sido um homem minimamente autêntico, teria compreendido que a escrita não era tão importante como cada momento. Que não era preciso deixar grandes legados e trazer às pessoas esse dionisíaco ancestral que ele só terá experimentado (ao que os seus escritos deixam antever) como transcendente alienação (comunhão com tudo, mas desgarrado da realidade concreta!!). Que o mais importante seria sorver essa força de loucura genial, em cada momento, e, cada vez com maior travo e em golos maiores, lentamente, a pouco e pouco, step-by-step. Essa pujança da vida, essa Liberdade em ser como se é, em se mostrar tudo o que é possível mostrar sem prejudicar ninguém, esse à vontade que é ver toda a vida como uma brincadeira de passagem, o ajudar a flor, a criança, a formiga, a digestão, a (des)composição dos talheres, a composição da face... pequenas coisas, muito pequenas, onde de facto se revela a transcendência, que é ver a vida a partir do cimo, a partir do todo: que nada importa mas onde tudo é sagrado e ocasião de culto, pois o momento é único sítio onde podemos ser e sentir a presença de Deus.

Porque não deverá o super-homem procurar a verdade? Será porque não se quer vergar? Mas o verdadeiro homem transcendente sabe que é impossível alguém vergar-se. Tudo o que se verga é a mente, são as aspirações, é a visão. Mas dentro do homem, a sua Vida não pode ser vergada, nunca foi vergada, é como a chama que, no máximo, pode extinguir-se. Se sou eu que me vicio em jogos de computador, como posso dizer que me verguei a eles? Pelo contrário, sou eu que me agarro ao vício como um cavaleiro em cavalo sem sela, galopando por montes e vales. Da mesma forma o cigarro, a religião, as honrarias... todas essas aparentes bengalas são agarradas ferozmente: não é por ser religioso que alguém se vergou ou está preso. Estará certamente numa prisão com pouca vista para o Sol, mas é porque quer lá estar. A porta da prisão sempre esteve aberta, mas as suas mão crivam-se nas grades, agarra-se com garras e dentes, apaixonadamente, à sua protecção, onde pode experimentar com segurança, os mundos interiores e exteriores que vai explorando e lhe abrem os olhos a infinitas belezas com que antes nunca tinha sonhado. Quando deixar de ser assim, cansa-se, parte para outra, que lhe dê o que desta só consegue antecipar.

Por isso o super homem, o homem transcendente, o verdadeiro übermensch, compreenderia que ninguém o é, ou então todos o são. A sua superioridade não se baseia em ser mais importante (líder), mais forte, mais valioso, nem sequer mais temperado, corajoso, inteligente, sábio, humilde ou qualquer outra coisa. A sua superioridade baseia-se apenas nisto: quando tem a possibilidade de olhar para alguém ou alguma coisa que, nem os sentidos, nem a razão, nem a emoção distorçam ou limitem a visão (há poucas coisas assim, por exemplo, uma árvore não encaixa nesta categoria uma vez que os nossos olhos só nos dão a visão de uma infinitesimal parcela da sua casca - a visão da casca de uma árvore, em todos os seus pormenores, pareceria maior do que nos parece a nossa galáxia), saboreia, interiormente, a paixão íntima dessa pessoa, objecto ou situação, como se o conhecesse há muitos anos, como se fizesse parte de si. Pode não o conseguir demonstrar, mas existe, mais que uma Irmandade, uma Unidade entre ele e todos os seres, o que lhe dá um à vontade e, sobretudo, este único saber: o de que não há nada a perder...

O verdadeiro Übermensch não se sente nem inferior, nem superior, nem igual: sendo Livre sente-se Uno com aquilo que vê.
(foto de Syd Barrett,
membro fundador dos Pink Floyd)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Ursula Martinez - o dom de fazer o impossível parecer possível

.Este vídeo mostra uma coisa fantástica! Pelo menos para mim!

Quantas vezes já me senti inibido na presença de estranhos, ou até de conhecidos. Mas esta miúda apresenta-se, sempre com presença substancial, nua, em frente de uma audiência que nem sequer estava à espera de a ver-se despir.

O choque da audiência, a naturalidade com que ela consegue permanecer em palco, por um lado pedindo a colaboração / entusiasmo, por cada peça de roupa que tira (sem se impôr forçosamente), mas por outro lado mantendo-se completamente no controlo da situação (a cena das mãos nas orelhas com o ímpeto das ancas, e o pormenor do círculo com o braço no final, como quem diz: tenho-vos na mão). Tudo isto sem grandes vestígios de vergonha ou auto-censura em frente a centenas de pessoas vestidas (literal e figurativamente).

É espectacular. Parece mesmo alguém que se libertou ou se tenta libertar de todos os conceitos vergonhosos (que nos reprimem) desta aparentemente tão aberta sociedade, mas onde nem nos sentimos livres para dizer abertamente o que pensamos. Isto sim é o melhor de Nietzsche: o fim da vergonha, o homem capaz de se mostrar, de se afirmar sem medo, seguro apenas em si, no seu sonho, mesmo perante uma sociedade repressiva, trazendo o mistério (simbolizado no lencinho) a esta realidade.

Muito giro mesmo e meticulosamente preparado. Notem-se os muitos detalhes: a roupa é claramente masculina, assim como a pose em palco, dominadora. Isto leva a uma confusão mental que nos impede de censurar inconsciente e automaticamente (como de costume) o que estamos a ver. De facto nem parece uma "puta" - longe disso - nem um exibicionista. a atenção é retirada ao público desde o primeiro momento com os movimentos extravagantes dos olhos, e a posição convencida e auto-confiante, que, em conjunto com o fato quase à homem, nos levam para uma paisagem algo surreal e burlesca, e depois a atenção volta a ser arrastada pelo lenço e seu mistério.

Enquanto a mente está assim entretida a tentar captar o mistério do lenço e a encaixar a estranha atitude da miúda na música, no fato, na dança (tudo um pouco bizarro), eis que ela se começa a despir. E aqui o facto fundamental é estarmos perdidos, sem referências. Se ela mostrasse vergonha castigávamos com "indecência!", se a música fosse sensual seria "erotismo", se a roupa fosse feminina seria um "truque barato". Mas a confusão dos papéis é tanta que a Ursula tem a capacidade de nos guiar, o olhar, a atenção, para a postura, para o lenço, para o controle que parece ter sobre nós, para a dança, para o passe de magia. E enquanto isso despe-se, deixando-nos atónitos nas nossas cadeiras. Afinal estamos a ver um passe de mágica trivial enquanto a ilusionista rompe com todas as barreiras de pudor que regem a nossa vida à séculos, dentro e fora de casa, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Outra estratégia é o modo de olhar, como se "nós" é que estivéssemos em cheque. Não só olha claramente e de frente para a plateia, como dirige olhares, como se, a qualquer momento cada um de nós pudesse ser posto num tête à tête virtual com a menina. É como se o espectador também estivesse no palco, tais são os olhares de cumplicidade e os pedidos (quando ainda se podem pedir) de entusiasmo do publico. Finalmente à sempre uma boa razão para tirar a próxima peça de roupa: o lenço parece vir de lá. Até parece um espectáculo de magia.

Temos de dizer que é um bom estratagema para se conseguir despir em público, quebrando as nossas fronteiras da vergonha, do ridículo e do bom gosto. Agora já sabemos, quando quisermos quebrar normas: manter o controlo, confundir o público alvo, desaparecer de cena rapidamente (enquanto a confusão está no ar). Contas feitas, poderemos ter chocado imenso e ofendido nada.

Ursula Martinez: wikipédia e página pessoal.

"In the striptease I take all my clothes off but its powerful, not vulnerable at all because you almost build a protective wall with your own sexuality." bbc

domingo, 3 de fevereiro de 2008

A religião é o ópio...

A religião é o ópio daqueles drogados que além de não verem o Paraíso ainda procuram no Inferno as suas chaves.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Tears made of Heaven



Visto em: ministério da soltura

Heaven and Hell


Heaven and Hell é, entre muitas outras coisas, o título de um álbum fabuloso do Vangelis (que parece descrever a história deste nosso planeta - e portanto também de nós próprios - desde as origens mais remotas, no espaço interstelar), mas descreve também dois tipos de experiência que têm em comum a abertura.

No primeiro caso a abertura é fruto do maior desejo interior, unido a tudo o que somos. Ou seja, além de voluntária, é desejada por cada parte do nosso ser. E quem o faz é porque encontra naquilo para o qual se abre a mais deslumbrante e transcendente Beleza. Era de supor que todos os casamentos fossem desse tipo ^_^ mas há quem tenha dúvidas!

No segundo caso a abertura faz-se pela força, pela dor, e em relação a algo que o sujeito aberto acha desprezível e que lhe traz a desfiguração e a morte.

Apesar de num dos casos atingirmos um deslumbrante prazer e um crescimento ou complemento, e de no segundo caso sermos forçados à mais terrível dor, desmembramento e desfiguração, em ambos os casos se trata de uma dissolução. A diferença fundamental é que a dissolução no Paraíso complementa, completa, torna Uno e total, ou seja, nada destrói a não ser as fronteiras, os limites, reconduzindo tudo o que já existia em nós a outros pontos, onde se interligam com muitos outros aspectos da realidade. Fomos transfigurados, mas não desfigurados, perdemos as fronteiras, mas não o valor. Nada do que aprendemos se perdeu, nada do que somos, nem uma gota, nem a mais pequena parte, deixou de existir: apenas contextualizámos o que éramos e continuamos ainda a ser, num horizonte muitíssimo maior, mais vasto, onde tudo o que éramos ganha ainda mais (não menos) sentido. Trata-se pois de uma dissolução onde nada se perde, tudo se transmuta em algo maior.

No caso do Inferno, também existe a mesma dissolução, mas aí, pelo contrário, há desfiguração. Ao Obrigar à abertura, ao forçar a abertura, estamos efectivamente a destruir algo que existe. O que isto significa é que, em vez de o antigo ser integrado no novo (como no Paraíso), é esmigalhado por ele, ou seja, substituído, sem que haja um enriquecimento mútuo. Enquanto que, por exemplo, uma imagem do Paraíso seria: dois amantes que se comem sem nada retirarem um ao outro, ou seja, o seu comer é um ir lá, atravessar, encontrar, num processo de duplo crescimento (win-win), o Inferno acontece para um animal que é comido vivo: a sua dissolução é pura perda, a desfiguração não lhe traz maior integridade, pelo contrário, retira-lhe a sua essência, a sua fonte de vida; aquilo que ele era desaparece para sempre, primeiro é desfigurado, depois aniquilado, até ao nada.



Duas aberturas, duas dissoluções, dois desaparecimentos, mas numa cresce-se, transcende-se, face ao Divino Integrador, na outra, diminui-se, desfigura-se, morre-se, face ao Diabo Sedento...


Nem sempre é claro qual é qual, por exemplo no casamento, às vezes pensamos que estamos a entrar numa, e é a outra. Ou na morte, quem sabe?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Agir por Beleza

Agimos porque...

pode ser para nos defender, temos medo ou sentimos dor...

pode ser para alcançar, temos fome, de saber de comida de sexo de amor...

pode ser por Beleza, porque, olhamos para lá e para cá do horizonte e tudo o que vemos nele nos encanta,

e nesse caso a nossa acção é a transbordância do Mundo que existe, Mundo de Luz, para lá de Nós...

Luz, Luz, Luz, por toda a parte Luz...

e como Eternos Amantes, de desavenças perdidas, mergulhamos no Mundo, no Todo e em cada Parte...

O Amante nu elogiando a máscara

.
Quando amamos o amor em alguém, para lá de todas as ilusões, podemos ter a tendência de lhe retirar a máscara para lhe dizermos melhor como e o quanto amamos. Afinal, se os amantes se despem para mostrar o seu amor, não será porque o amor é cego e, se for atirado à máscara, não consegue chegar do coração ao coração?

Por isso os amantes brincam tanto, jocosamente desaparecem as faces do chefe, do forte, da senhora cheia de certezas, e o medo amedrontado da menina tímida dá lugar à aceitação, ao abraço. Pelo riso se vão despindo as máscaras, até ficares só tu e eu, nus, nada entre nós senão o olhar...

E então é a vez do Riso puro encher os espaços e darmos lugar ao desejo louco, ao beijo que se abre num sorriso, à boca que se abre num olhar. Corpos entrelaçados, palpitando numa mesma vontade, sem separações, só o abraço, um único corpo que se beija, um único entrelaçado, dois olhares fundidos num carinho...

Mas nem sempre podemos tirar as máscaras... por vezes aquele a quem quereríamos agraciar, revelando-lhe a nudez da nossa presença, agarra-se à máscara como se fosse a própria vida. Nesse caso, para que sinta o amor que somos temos de elogiar-lhe a máscara... embora, por vezes, a expressão desse amor seja separá-la um pouco mais da pele...

Dissolução e imortalidade, ou, o b+á=bá da imortalidade da alma

Bem! Tenho andado a escrever para um blogue chamado Serpente Emplumada, nome explicitamente inspirado pelo seguinte texto de Pessoa: "Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [passando] para além de Deus". Como se vê facilmente é um projecto que alguns considerariam ambicioso. Neste caso o que se passa é que ao publicar uma das minhas mensagens, sobre a não acção, e que consistia na mera afirmação do óbvio, isto é: "Se baixares os braços... os elementos não te dissolvem porque nunca exististe..."

Ora parece que não só esta mensagem não foi compreendida por alguns comentadores como nem sequer o mais básico dos básicos que também a sustenta, isto é: «o que é existir e em que sentido podemos dizer que a alma é imortal?» Se uma pessoa não sabe isto, como pode querer viajar nos interstícios da Serpente, para lá de Deus??!? É como se estivéssemos num blogue de matemática avançada e alguém tivesse posto como gracejo este sistema a duas equações:



E viessem pessoas perguntar: «mas como se resolve isto?» Ora isto é o óbvio do óbvio!! Não cabe responder a este tipo de dúvidas num âmbito de um blogue de matemática tão avançada! Daí que, uma vez que essa explicação me parece tão básica, mas mesmo tão básica, resolvi colocar aqui o b+á bá da imortalidade da alma.

Do ponto de vista meramente físico compreende-se muito bem o que significa ser a matéria imortal, um princípio amplamente reconhecido ao ponto de hoje já passar despercebido (como tudo o que perdeu a polémica) e resumido na célebre frase "nada se perde, tudo se transforma". Ora, detalhando mais um pouco, o comentário que ainda assim escrevi como resposta (e pelo qual peço já desculpa dado o seu carácter elementar) foi o seguinte:

"Vamos lá então: um quilo de feijões, uma multidão, um corpo físico, todas estas coisas são agregados. É evidente que existem, mas em que é que consiste a sua existência? Fundamentalmente na existência de cada uma das suas partes. Se eu pegar no quilo de feijão e o dividir em duas partes posso dizer que:

"o quilo de feijão deixou de existir"

O que num certo sentido é correcto. Mas também é correcto dizer que nenhum dos feijões deixou de existir.

De forma mais geral podemos dizer que aquilo que são os constituintes fundamentais da matéria / Existência (que podem ser fermiões, bosões, cordas, energia e gravidade, etc, consoante as teorias) nunca deixam de existir.

Agora alguém pode ter medo que o quilo de feijão deixe de existir, que se dissolva, que se dissipe. Ao que nós poderíamos responder: mas ele nunca existiu!! Não significa que não exista enquanto agregado, mas simplesmente que não existe enquanto algo de fundamental, é "aparência". Aquilo que o quilo de feijão sempre foi na sua essência não deixará de existir, não poderá deixar de existir, só por o pormos numa configuração diferente!"

Pronto, em relação à matéria deverá então ser óbvio para todos que há dois significados para a palavra "Existir": um que designa o que permanece desde sempre no Universo, indestrutível, o fundamento, a base; e outro sentido de "existir" que se refere ao facto de certas articulações desse algo fundamental estarem aqui e agora perante mim (considerando este "mim" como outra mera articulação dessa realidade fundamental). No primeiro caso estamos a falar de algo logicamente indestrutível (já que é a base de tudo), no segundo caso estamos a falar da minha relação (o falante articulado) com esses elementos, também eles relacionados entre si, e que vejo diante de mim. Tudo meras relações, relações instáveis e frágeis, é certo, mas entre uma e a mesma realidade fundamental!

É de notar que todas essas articulações mutantes, essas formas pelas quais a realidade fundamental vai passando são também indestrutíveis no plano da possibilidade. Ou seja, o quilo de feijões sempre foi possível desde o início da Existência (se é que houve um início para a Existência) - a fortiori, se não fosse possível, nunca teria acontecido. Ou seja, tudo o que aconteceu ou acontece, desde sempre foi possível, precisamente porque o que é fundamental já o continha enquanto possibilidade, implicitamente, dentro de si! O que continuará a acontecer para todo o sempre. Tudo isto é trivial.

O carácter efémero da matéria é então uma ilusão que resulta de vermos a matéria como pratos e cadeiras e vasos em vez de a vermos como ela realmente é: fermiões e bosões (ou o que quer que seja fundamental) que se apresentam sob a forma de pratos e cadeiras e vasos. Os vasos e as cadeiras são reais, mas é uma realidade emprestada, derivada, de uma realidade, essa sim, real em sentido próprio, e indestrutível. Para o cientista, ou amante do saber (não lhe chamarei filósofo porque muitos filósofos hoje parecem mais amantes da fama, do bom nome e do dinheiro) que veja para lá das aparências - do jogo de relações -, a realidade aparece-lhe como realmente é: eterna, imutável, jogando esse jogo de máscaras e de mudança, mas na realidade permanecendo sempre igual a si mesmo, mais que evidente (apesar de, aos olhos do macaco humano, para sempre invisível) no meio de toda essa aparente alteridade. Por isso em várias épocas se elogiou tanto a razão, porque ela é capaz de ultrapassar as limitações dos sentidos apontando-nos o caminho para ver o que é tal como é e não como apenas aparece.

Agora, falámos da matéria, mas, em relação à consciência, é a mesmíssima coisa. A única diferença é que, no estado actual do conhecimento científico, ninguém pode demonstrar experimentalmente qual a relação exacta entre a alma e o corpo. Estamos portanto no domínio especulativo e teremos portanto de contemplar várias dessas especulações para ver se em todas elas se aplica à consciência a mesma imortalidade de que a matéria goza. Ora, de forma geral, dada a imortalidade da matéria, a alma fica naturalmente contemplada por essa imortalidade, pois a relação entre a base e as suas aglomerações articuladas coloca-se a qualquer tipo de realidade, seja ela visível aos sentidos, ou não; esteja ela no espaço-tempo, ou não. A não ser que criemos uma teoria ad hoc especificamente para nos convencermos de que a alma goza de algum estatuto especial que lhe garanta a mortalidade! (O medo é tanto que temos de dar plausibilidade aos nossos fantasmas criando teorias extravagantes que nos mostrem que sim, que podemos morrer!! Ai a dor, ai o medo, ai o drama! Quando a mais elementar observação basta para nos mostrar que tal é impossível. Mas que seria da Vida sem o medo da Morte!! Ai, até custa a imaginar, viver sem esses Fantasmas!! ;)

A demonstração é simples, mas como não sabemos (experimentalmente, cientificamente) qual a relação entre a consciência e a matéria teremos de considerar várias hipóteses especulativas. Note-se que há imensas possibilidades, o filósofo David Chalmers tem textos muito claros sobre muitas dessas hipóteses (este por exemplo).

Aqui basta-nos uma ideia muito geral, eis alguns dos modos segundo os quais a relação entre consciência e matéria pode ser vista:

(1) que ela é idêntica à matéria (o chamado materialismo (reducionista ou de propriedades emergentes) - geralmente associado ao funcionalismo - eu sou o meu cérebro, etc.);
(2) que, não sendo idêntica à matéria, é um mero epifenómeno de acontecimentos materiais - isto é: a matéria influencia a mente, mas não o contrário; ou ainda: tudo o que acontece pode ser inteiramente explicado por uma descrição meramente física do mundo, apesar de que essa explicação, completa do ponto de vista causal, não implica a descrição de estados conscientes (dualismo com interacção de um só sentido, também pode ser associado ao funcionalismo, ou a outras teorias);
(3) que tem de facto poderes causais, podendo influenciar o mundo (por exemplo aproveitando os graus de liberdade que os sistemas físicos proporcionam, ao nível atómico e em certos sistemas onde esses graus de liberdade são amplificados para níveis macroscópicos, sistemas dinâmicos, caóticos, fractais, etc. - ninguém sabe se o cérebro será um deles). (dualismo com interacção recíproca entre mente e matéria)
(4) que tanto a consciência como a matéria são dois aspectos de uma realidade mais essencial e que se manifesta como um ou outro (monismo - também por vezes associado ao funcionalismo e/ou pampsiquismo);

Pronto, poderíamos colocar muito mais hipóteses, mas estas já devem chegar para o que queremos:

Ora o único caso em que podemos imaginar que a alma é mortal é o terceiro, ou seja aquele em que supomos que existe uma espécie de alma, um fantasma, que é o sujeito, independente do corpo e que o influencia. Ora aqui podemos de facto imaginar que esta alma pode desaparecer, não tanto com o fim do corpo mas em qualquer momento, pois de facto não sabemos o que lhe deu origem nem o que a sustém. Talvez ela possa desaparecer num momento qualquer (ficando o corpo sem vida ou num estado vegetativo), ou talvez possa sobreviver à morte do corpo durante uns cinco minutos e depois de ser julgada, plof, desaparecer. Na verdade podemos imaginar qualquer coisa em relação à mortalidade desta alma, pois estamos a falar de algo que não conhecemos e, portanto, é possível que se comporte de todas as maneiras que quisermos imaginar. Ou seja, a possibilidade que temos, neste caso, de achar que a alma é mortal, deriva do facto de não sabermos nada sobre ela e sermos por isso livres de afirmarmos o que bem quisermos, mesmo a coisa mais bizarra.

Por outro lado vivemos num mundo perfeitamente imortal, onde todos os elementos básicos, as forças, as partículas, as leis da física e do pensamento, são, tanto quando podemos ver, imortais. No entanto, se colocamos como hipótese uma entidade "a alma" sobre a qual nada sabemos, nem em relação à sua origem nem à sua natureza, é evidente que podemos pensar que ela é mortal. Mas reparem que aí a alma é a excepção, não a regra. A regra é a imortalidade: tudo o que é fundamental é imortal (tanto quando podemos observar no estado actual do conhecimento). Note-se ainda que fomos nós que introduzimos a mortalidade na teoria à custa da ininteligibilidade, talvez porque o nosso medo de morrer é tão grande que queremos à força torná-lo plausível inventando todas as razões para tornar a morte plausível, mesmo quando tudo à nossa volta (pelo menos do ponto de vista físico) é manifestamente imortal nos seus fundamentos só se fazendo e refazendo nas suas articulações / aparência.

Que nas outras hipóteses a alma é claramente imortal é fácil de ver: por exemplo no materialismo (quer seja reducionista ou não). Se eu sou idêntico ao meu corpo, ou ao meu cérebro, então existo, como possibilidade desde o início dos tempos. Ou seja desde que o Universo existe que as leis permitem uma configuração da matéria que resulte exactamente no que eu sou aqui e agora. Essa possibilidade vai continuar a existir no momento seguinte. Por exemplo, neste preciso momento, aquilo que ainda agora fui já morreu e, no entanto, continua a existir como possibilidade apesar de nem eu próprio poder reconstituir o que fui, em todos os detalhes, nem na minha memória nem na minha presença. A morte do sujeito enquanto entidade complexa (porque, como vimos a sua base é indestrutível) acontece momento a momento. Não há um único momento que passe em que eu não morra, e em muitos desses momentos renasce um sujeito algo semelhante, ora mais alegre, ora mais triste, ora com um pensamento, ora com outro, tal como uma Fénix sempre a consumir-se e a renascer no fogo do Tempo. A morte é o fim desse renascer do sujeito social, outros renascimentos virão, de cinzas, de minhocas, de árvores, etc. Mas o renascimento que nos interessava a nós, enquanto sujeitos sociais, portadores de nome e bilhete de identidade, foi-se, e ficamos tristes pois o nosso nome e BI será também posto nas chamas mais tarde ou mais cedo. Mas note-se que a Fénix que renasce não é a mesma Fénix. O meu nome é Pedro (ou Luar, se quiserem) e as pessoas continuam a chamar-me Pedro, mesmo que passe um segundo, um dia, um mês, uma década. Mas não se trata do mesmo sujeito. Isso é sobretudo notável em acidentes, doenças cerebrais (acidentes, tumores, etc) onde um sujeito, no prazo de horas muda completamente de figura! A nossa ilusão de permanecermos o mesmo ao longo dos segundos é o que nos traz também o medo da morte. Mas é uma ilusão tão ridícula e óbvia que basta a mais trivial constatação para a desmontar. Afinal, quando tinha cinco anos, o que permanecia igual em mim? E quando estiver doente e senil, o que permanece igual? A ilusão social mantida pelos nossos nomes, pelas profissões, pelas relações familiares, pelas posses (de casas, de animais, de ideias, de clubes, de estilos, etc), leva-nos a acreditar nesse amontoado de fundamental, sempre mutável, como algo que continua. Mas a única coisa que continua é o que não tem princípio nem fim. Neste sentido nós não podemos morrer porque desde sempre estamos mortos, nunca chegámos a existir. Aquilo que em nós de facto existe e Vibra e É, e está na origem profunda da Consciência, isso É momento a momento, imutável, indestrutível, indecomponível. É aí que Existimos, e aí sim, existimos realmente, é a Vida, é a mesma Vida em configurações diferentes. Por isso, tal como distinguimos dois usos da palavra "existência" para a matéria, temos de distinguir também duas formas em que podemos perspectivar a existência do eu: o eu como agregado é absolutamente diferente nas suas relações internas e externas a cada momento, mas, na realidade que não se mostra aos sentidos, cada eu é absolutamente igual, indistinguível e indestrutível naquilo que nele é o Fundamento ou Fundamental.

O facto de nem materialistas nem idealistas considerarem esta tese óbvia e trivial mostra bem o peso que as ilusões sociais têm em nós, criando um desejo, melhor seria chamar-lhe estultícia, para que o "eu" social permaneça, quando ele na verdade não passa de máscara do que realmente somos, do tudo que é e não pode deixar de ser: a base da Criação. Pois tudo o que existe são aspectos ou facetas de algo imortal.

Pronto, isto segundo a hipótese do materialismo ou da identidade entre consciência e matéria. O mesmo se passa se considerarmos qualquer outra teoria onde a consciência tenha uma relação inteligível com a base, com a realidade eterna, pois se uma é manifestamente imortal (por exemplo a fermiões e bosões), teríamos de recorrer a grandes artifícios para tornar plausível a ideia de que a outra era mortal nalgum sentido importante.

Ora é claro, poder-se-á objectar: os fermiões podem ser imortais, mas a canela não existe desde sempre nem para todo o sempre. Tudo o que vemos à nossa volta, a atmosfera, as rochas, o mar, os animais, as civilizações, os livros, as plantas, o próprio planeta, tudo isso teve um princípio e terá um fim. Mas, no sentido mais real e fundamental, como já expliquei, a canela nunca existiu, nem nenhum composto, ou seja, ela aparece aos nossos olhos como canela porque os olhos do corpo também são compostos e têm uma certa escala espacial, temporal e computacional que só lhes permitem detectar diferenças composicionais e a uma certa escala; mas, de facto, a canela, como realmente é, consiste apenas na realidade fundamental (fermiões, bosões ou o que quer que seja) articulada ou configurada de uma certa maneira. A prova mais evidente que temos de que essa realidade permanece igual e imutável reside na universalidade das leis da natureza, pois que outra coisa poderia explicar que as leis da natureza permanecessem imutáveis se não fosse a própria imutabilidade do que lhes dá origem, ou seja, a própria Existência. Por isso, tudo o que muda é aparente. De facto, na realidade, não há mudança e somos reconduzidos ao poema de Parménides, segundo o qual só os humanos cegos e bicéfalos podem pensar que o devir acontece. A permanência que o cientista consegue ver no mundo da alteridade é a mesma permanência que o místico vê na alma perante os ciclos da vida e da morte. Centrando-se no que não muda, um usando o olhar do corpo (ampliado por microscópios, telescópios, etc), outro usando o olhar da alma (ampliado por uma grande sede de verdade, coragem e autenticidade), conseguem ambos ver o mundo eterno que é mais que evidente em cada uma das formas que iludem os incautos.

Resumindo, como realidade composta nunca chegámos a existir, como realidade fundamental vamos existir para todo o sempre: as nossas personas, os nossos desejos, crenças, medos, ansiedades, relações, objectivos, etc, são como a canela. Configurações momentâneas do que realmente existe. Cada uma dessas configurações (que nascem e morrem a cada momento: o Pedro do segundo 19 não é igual ao Pedro do segundo 20, essa persona morreu e nasceu entretanto!) existe desde sempre e para todo o sempre como possibilidade deste universo. Não é por esta canela deixar de existir que a canela "em si" (pareço o Platão) deixa de existir, enquanto possibilidade (ou forma platónica). Como é óbvio o eu de há 20 anos não é o mesmo eu de hoje ou do de aqui a 20 anos. Por isso quem acredita em alminhas que vão para o céu terá dificuldade em compreender se o Sr. José, morrido aos 93 anos vai chegar ao céu como menino reguila, como adolescente apaixonado, como chefe de família ponderado, como idoso sábio ou já senil. Será julgado exactamente por ser exactamente o quê? Se foi tantas pessoas ao longo da sua vida, a esmagadora maioria das quais já ninguém lembra incluindo ele próprio?

Quais as consequências éticas e estéticas da nossa imortalidade? São de dois tipos: por um lado somos inteiramente Livres para abandonar as nossas máscaras, os nossos nomes, as nossas profissões, o nosso passado, a nossa memória, os nossos tiques e tudo o resto que nos torna indivíduos reconhecidos aos olhos de outros. Não é por isso que iremos morrer ou deixar de ser quem somos realmente. Por outro lado também não faz sentido tentarmos ser de uma certa maneira ou de tentar que as coisas sejam de uma certa maneira, pois isso também não nos fará mais nós próprios. Não é por me continuarem a chamar de Pedro que serei mais real do que se agora me chamarem Afonso, não é por continuar a ser rico que continuarei a ser eu. Eu sou Eu, aconteça o que acontecer, na vida e na morte, como ser humano senil, como folha largada ao vento, como génio, como louco, como criança indefesa, como ditador poderoso. Então, o que fazer? Parece que nada vale a pena!!! Caímos por acaso numa aporia? A minha resposta, já a dei no tal blogue da Serpente e é mais ou menos esta (esclareci melhor uma passagem ajudado por um comentário do Tamborim) -

"É claro que nada vale a pena. Daí o conceito oriental da "não-acção". Não agir significa exactamente isso. Quanto a mim, é o passo seguinte do existencialismo francês (apesar de ter sido dado antes, no Oriente). Porque, enquanto no existencialismo ainda estamos perante o choque, o incrível choque, da ausência de sentido da vida, e ficamos como que parados, sem saber o que fazer perante esse nada nadificante, no oriente já se tinha dado mais um passo com a técnica da não acção.

A técnica da não acção diz que, se nada vale a pena, então deves deixar as coisas fluir, sem empurrar nem para a direita, nem para a esquerda, nem para trás, nem para a frente. Quando isso acontece, acontece o verdadeiro desapego, tu desapareces mas todo o mundo nasce em ti...

É o Existencialismo levado até ao extremo, e que renasce, mais do que como um Idealismo: como absoluta Liberdade e Transcendência. Ou seja, da tonalidade desesperada de um "estamos condenados a ser livres" chegamos à exuberância em êxtase do "Sou LIBERDADE!"

Repara que, se tivesses feito isso, se tivesses realmente feito isso de "baixar os braços e deixar que os elementos nos dissolvam" terias descoberto que eles não te dissolvem...

Eles começam a dançar e a cantar dentro de ti, feitos malukos!! Feitos eternos malukos!! E dessa dança ou do seu sabor já não escapas mais, enquanto estiveres lúcida!

Experimenta!! A vida NÃO faz sentido, não há saída, não há salvação, não há Buda, não há iluminação, não há caminho: NADA, mas mesmo nada, vale a "pena"...

É claro que isto é na teoria, na prática, ao estar cheio de dores de barriga, não consigo pensar em mais nada...

^_^

PS - também devíamos dizer que "tudo vale a pena". Bolas, temos de escrever um outro texto sobre isto..."

Aqui a razão perde o pé. De um ponto de vista meramente racional pareceria que, se tudo é de igual valor, então deixa de haver sentido, caminho. Mas a razão é a tal que só consegue ver ou a causa ou o acaso. Não consegue contemplar o disforme, aquilo que nem tem causa nem é por acaso. De facto, ao dizermos que tudo é igual, que não sou mais por ser Pedro ou vagabundo, por viver ou morrer, pareceria que então era tão fácil deitar-me à morte como continuar a viver. Mas na prática não é isso que sucede: da mesma maneira que não conseguimos computar certas equações da electrodinâmica quântica, pois aparecem infinitos, também não conseguimos tornar inteligível que um Nada tenha tanta coisa lá dentro. Do ponto de vista racional é absurdo, e, se fôssemos guiados exclusivamente pela razão, teríamos de nos programar segundo o acaso: seria o fim da ética e de todo o comportamento moral. Mas o que é certo é que, quando nos deixamos inebriar por esse Fundamento não-relacional, quando deixamos cair as máscaras, quando deixamos o Pedro, o Paulo, a Regina, a Manuela, e passamos a ser apenas esse incondicionado, para quem a morte já não é senão absurdo ridículo, a vida renasce em nós. E em vez de contemplarmos o Absurdo que deprimia os franceses, imersos em toda aquela etiqueta, descobrimo-nos como "Sou LIBERDADE"! E nada há que eu conheça de mais Feliz, mais Criador, mais pujante e Transbordante de Bonança do que esse estado.

Mas isso já ultrapassa a minha razão, isso tereis de o experimentar. O cego só verá a cor do Sol quando abrir os olhos à luz, mas para isso precisa de compreender que a cegueira não é virtude, o que é difícil, pois toda a gente o tratou, desde que se lembra, por Cego: «Sr. Cego, Dr. Cego, Sua Excelência Doutor Cego, pai Cego, irmão Cego, empregado Cego, patrão Cego, amante Cego, e até, ao que tudo se resume: meu Querido Cego!!! E agora, deixar isso tudo, só para olhar para o Sol, e apreender apenas aquilo que é óbvio: que não existo, que nunca existi? A troco de ser Feliz! A troco de cair no Abismo? Nãaa, prefiro a segurança das minhas relações, é certo que terei sempre medo da morte, mas também é certo que saberei sempre onde estou, e o sítio para onde me queres levar "não tem longe nem idade". Nãaaa...» Eis o discurso do Cego, imerso em Sol, criado pelo Sol, mantido pelo Sol, e cujo Amante, Extremo, desde Sempre, é o Sol...

eheheh!!!! Que texto este! Que Gozo me deu! ^_^

(PS - note-se que há claramente muitos aspectos que ficaram incompletos, por exemplo o estatuto ontológico da possibilidade e da actualidade e também dos conjuntos (terão alguma existência própria? e como poderemos determiná-lo com certeza?), outra questão por resolver será a da (in)existência de um eu profundo (não o eu social, é claro, esse sim claramente ilusório) ao nível fundamental. Mas para esta última questão gostaria de conseguir expressar uma resposta de meio termo do tipo é e não é verdade que um eu fundamental existe, o que parece impossível logicamente. Outro aspecto que pode não ter ficado claro é o da relação entre o dualismo e a ininteligibilidade que conduz à mortalidade da alma. Esclarecendo melhor: não é o dualismo em si que conduz à mortalidade da alma. Podemos ser dualistas, trilistas, quadrilistas, etc, e interaccionistas, que em nenhum caso haverá qualquer dificuldade em relação à imortalidade pois a mesma relação entre base e composto, entre origem e figura se mantêm. Aquilo que verdadeiramente está na origem da crença de que a alma pode ser mortal é a ininteligibilidade da própria concepção de alma, concepção que normalmente é mais originada pelo medo do que pela razão ou pelo desejo puro de verdade. Trata-se talvez daquilo a que McGinn chama "pensamento mágico" e que não é senão a súmula dos nossos medos. Note-se que as teorias dualistas foram propostas tradicionalmente no seio de comunidades religiosas onde interessa sobretudo manter os fiéis crédulos e medrosos, na ilusão de que há algo a temer e algo a alcançar. Daí que o medo da morte (tal como a condenação do que não conseguimos evitar - sexualidade, egocentrismo, luxúria, etc - para gerar a vergonha e desamor) seja essencial, não só para a religião mas para todos os sistemas que procuram ordenar a mente humana, quer a nível de grandes grupos, como a política e as tradições (nacionalismo, bairrismo, clubismo, etc) quer a nível mais particular (relações amorosas, familiares, etc). Em todos estes casos o medo é fundamental, e o medo da morte, gerado pela premissa de que o eu social existe no mesmo plano do que o que somos verdadeiramente, é sem dúvida um dos mais generalizados. Mas mais uma vez sublinho, é um medo que se sustenta à custa do ininteligível. Se pensarmos claramente dificilmente conseguiríamos conceber que a vida em si seja mortal, tal como nada de fundamental o é.)