quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O gentleman no campo de batalha

A tradução mais simples de "gentleman" para português é "cavalheiro". No entanto as duas palavras têm, nas respectivas línguas, significados bastante diferentes e essa diferença, aliada ao facto de não haver em português qualquer tradução correcta para a palavra "gentleman" manifesta uma cisão cultural profunda sobre o papel do homem, do masculino, na sociedade.

Para os ingleses um gentleman é um homem que é "gentle", ou seja, gentil, suave, delicado e atento em tudo o que faz. Em português temos uma palavra para este género de homens: chamamos-lhes larilas ou maricas. Um homem sensível em Portugal é conotado com uma orientação sexual: se fala baixo, é delicado, sensível, só pode dar para o mesmo lado.

Os ingleses não parecem fazer a mesma associação. Pelo contrário, um gentleman, em Inglaterra, é considerado o expoente máximo da boa educação, da cortesia. Em geral será uma pessoa ilustre, pelo menos quanto aos modos.

O que pode explicar esta diferença? Bem uma das razões é esta: os ingleses têm uma tradição de guerra, lutas feudais e outras, foram conquistadores do mundo inteiro e a sua armada, marinha, etc, faz sentir a sua presença por todo o lado. Têm armas nucleares prontas a disparar de submarinos. São uma grande potência. Por isso, quando um homem inglês é gentil, delicado, ele mostra cortesia, pois limita o seu próprio poder perante o enorme poder que a sociedade a que pertence tem ao seu dispor.

Essa "gentleness", essa delicadeza suave é, portanto, bem vista, pois está integrada, faz parte, de uma força brutal que ninguém põe em causa e que pode ser desencadeada a qualquer momento. A delicadeza, na cultura inglesa, não é imediatamente vista como um sinal de fraqueza, pois é ela que permite, na integração social, o enorme poder do todo.

Em Portugal o mais próximo que temos disso é a "camaradagem" no exército, futebol e assim. Aqui, um tom mais suave, um sorriso, um abraço amigo, um tom conciliador, uma linguagem simpática, já não é visto como um sinal de falta de força. Mas a camaradagem é restrita a circunstâncias sociais onde o grupo tem muito poder. Por exemplo, é bem vista entre militares, numa equipa de futebol, ou qualquer outra actividade onde os homens possam ser vistos como "companheiros de luta". Aqui não há mariquice, falta de força. Pelo contrário, como no gentleman inglês, a camaradagem, o respeito, a delicadeza, são vistas como caminhos para solidificar o grupo e darem-lhe a força de actuação que ele precisa, para que muitos actuem como um só.

De forma geral vê-se que a delicadeza não é mais do que a anuência à vida em grupo, mais precisamente, pôr os interesses do outro, ou dos outros, à frente dos do indivíduo. É uma qualidade do homem enquanto animal gregário.

Então porque não se vê o cultivo do gentleman nos autocarros portugueses, nos locais de trabalho, até nas famílias? O bom pai português não é um gentleman, o bom trabalhador não é um gentleman. Talvez nas discotecas dê jeito, ou quando se quer conquistar uma miúda no emprego. Mas depois volta a personagem do guerreiro, da força a imperar. Porque em Portugal o homem ainda é visto como um guerreiro, na sociedade do "salve-se quem puder", onde o Estado é visto como uma corja de corruptos, onde escapam poucos. Nessas raras excepções, por exemplo os juízes e médicos, onde o português confia, onde acaba a guerra e começa a confiança, a civilidade volta a imperar. Então o português torna-se doce e gentil, no consultório do médico, a falar com o Sr Dr Juíz, o português todo se derrete. E aí já não é maricas: é um sinal de boa educação. A guerra acabou, já não tem de se provar. Está a ser cuidado, tratado, atenciosamente ouvido. E "amor com amor se paga", então o português derrete-se em silêncios, perguntas por fazer, delicadezas excessivas. E sai contente desses lugares, ciente de que fez um bom papel. Para logo entrar no autocarro ou no seu próprio carro e assumir o seu papel de guerreiro numa sociedade em luta, não deixando que ninguém lhe passe à frente (ou mesmo passando à frente) e ficando logo com o melhor lugar que encontrar, porque a ele, a ele, ninguém lhe passa a perna!

O mesmo se passa nas famílias. No início, quando se trata de conquistar a menina de que ainda mal se sabe o nome, é se gentil. Como se estivéssemos a ser introduzidos à família. «Que boa educação,», «o respeito! É muito gentil.» Agora, se essa delicadeza continuar pelos anos fora começa a ser vista de outra forma: passa de boa educação para simples fraqueza ou mariquice. O homem que é homem não deixa que a mulher fale mais alto que ele. Bate aos filhos quando é preciso. Impõe o respeito. Faz seguir, ou no mínimo faz ouvir bem alto, as suas opiniões e escolhas.

A família, a sociedade, em que vive o homem português, é, a maior parte das vezes, vista como uma guerra, um campo de batalha. Onde só vencem os mais fortes. Pobres dos ingleses que, a virem para cá com as suas delicadezas, vão comer porrada da grossa. E ainda piores estão os portugueses, sensíveis, delicados, que não se apercebem de viver num campo de batalha! Para eles vai um tiro de aviso: «devem gostar de comer no cú!» Agora sim, estão avisados! Ou enrijecem ou vai ser cá cada pancada! Que a gente diverte-se assim, neste país do salve-se quem puder, quem não aguentar a pancada está mal! Quem não quiser levar pancada que seja como nós: bruto, insensível, mas cá com uma couraça que nada o fere!

Enfim, não há dúvida que somos um país ainda com traços da Idade Média, mas com muitos telemóveis!

Sobre a palavra gentleman (em inglês).

Umas músicas para descontrair:





terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Deolinda - que parva que eu sou...

Eis uma música que alguns apelidam como o "hino" de uma nova geração.

Para mim é uma música cuja genialidade se confirma pela recepção que teve. Quero dizer: não é assim muito difícil inventar a música. Mas ir cantá-la para o palco e estar à espera de uma boa receptividade já me parece roçar a loucura ou, neste caso, a genialidade. A interpretação dada e a recepção conseguida mostra bem que se trata de génio. Afinal, podemos falar da parvoíce que nos rodeia, e isso pode ser bem visto!

Amazing!! Q.E.D.

A mim, no entanto, faz-me sentir triste e só.

Por exemplo, aqui está uma interpretação tirada da wikipedia: "A canção Parva que sou exprime na sua letra o descontentamento crescente de uma geração de jovens e adultos que sentem os seus sonhos frustrados pelos problemas sociais e de emprego que Portugal atravessa. A canção em estilo de Fado rapidamente foi classificada de música de intervenção"

Certamente que é uma interpretação possível, mas não é a única. No mínimo há três interpretações:
1) crítica: parva que sou porque deixo a vida passar sem aproveitar para me realizar.
2) irónico: parva que eu sou que tenho tudo sem fazer nada por isso.
3) panfletária: parva que sou por não contestar.

Aquilo que é mais chocante é a frase final "Parva não sou!" Pergunto-me: porquê? Porque contesto? As três interpretações acima vibram de sentidos diferentes com esta frase!

Bem, seja como for, eu proporia que deixássemos de ser parvos, porque há coisas bem mais interessantes: que fôssemos atrás dos nossos sonhos, da nossa música interior, porque, afinal, quem é que nos prende? Se calhar há pessoas, como o Nelson Mandela, que foram mais livres vivendo décadas no interior de uma prisão, do que eu que por vezes parece que só tenho vícios tendo tudo à mão. E o desperdício é tanto maior quanto mais nos foi oferecido e rejeitámos.

Eu poderia propô-lo, é verdade. Mas, reconheço agora, que essa proposta, de conquistar "um lugar ao sol" seria muito menos que genial, até mesmo old fashioned!! Um moralista antiquado.

Há que saber dar lugar aos novos! Eu já tive o meu tempo!!! :) Venha o hino dos Deolinda! É belíssimo e, por mim, guardo o hino dos Delfins no coração, afinal alguém terá de ficar como velho do Restelo!! :)

Parva que eu sou - Deolinda



Um lugar ao sol - Delfins

No fim de contas, prefiro estar ao sol sozinho do que à chuva acompanhado.
Porque, até onde consigo ver, é mais uma consequência da mera preferência ou vontade, e não de um privilégio ao acaso.

PS - já agora, mais um sobre denial: Smells like teen spirit

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Casamento

O Casamento...
aqui está uma actividade que pode ser vista de uma enormidade de perspectivas diferentes.

Talvez o aspecto mais interessante do casamento seja a forma como ele conjuga algo do foro do proibido e do pessoal (o sexo, a devassidão da paixão, o pecaminoso), com o foro do que é público (a família, o sagrado), e o instituem transformando, por exemplo, sexo em reprodução, paixão escaldante em laços familiares, etc.

Assim, os pais e as mães vão, nos seus melhores vestidos, reconhecer que os seus filhos vão fornicar nessa noite. E, espera-se, fornicar da melhor maneira possível, talvez selvagem, talvez delicada, mas sempre como sintoma de um grande amor, de algo que vai durar "para sempre", ou pelo menos para toda a vida. O laço dá sentido e respeitabilidade a tudo o que antes era pecaminoso.

A noiva, não vai propriamente de lingerie sexy, apesar de quase todos os adultos na festa, imaginarem os pormenores da lingerie e do que acontecerá logo à noite. Em vez dos rendilhados das meias de ligas, o que se vê é outro tipo de rendilhados: um véu longo, um vestido da cor das nuvens e que tudo tapa, exacerbando a imaginação.

O casamento é aquele tipo de eventos em que a respeitabilidade pretende esconder o que realmente se passa: aqueles tipos, a partir de agora, não só podem, mas devem dormir e f**** juntos. Não só lhes é permitido as maiores loucuras sexuais mas a isso são obrigados se querem ser um casal moderno e de "longa duração". A sexualidade é, a partir de agora, não uma fuga pecaminosa, às escondidas de todos, mas parte da comunicação e do jogo de trocas entre o casal. É algo que pode ser esperado ou mesmo exigido, falado com amigos íntimos e, até, causa para o divórcio.

O casamento tem de ser, por isso, algo de espectacular, para não parecer que estamos a falar do modo como uma rameira e o seu chulo se assumem face ao mundo. Isso seria chato, e irrealista. Afinal a mulher que diz: vou dar o meu corpo a este homem durante o resto da minha vida, está longe de ser uma rameira, porque não o faz só pelo dinheiro. Pelo contrário, fá-lo por amor, para ter filhos, para ter "uma vida", para se sentir realizada! Porque razão haveria uma pessoa de dizer: vou dar o meu corpo àquele homem durante o resto da vida, senão fosse por boas razões como estas? Para obter coisas boas e não más, como o dinheiro!!?

E o homem também não é um chulo, longe disso, mas mesmo muito longe disso. É certo que aquilo que o atrai é o sexo da mulher, sobretudo. E é certo que se ela se recusasse ao sexo provavelmente tudo acabaria passados uns meses. Mas mesmo assim, ele ama-a, quer protegê-la, fazê-la feliz, dar-lhe tudo, morrer por ela, se ela for para a cama com ele, é certo. Porque senão, torna-se talvez uma grande vaca, daquelas chatas, e ele pede o divórcio, porque não quer perder tempo com uma puritana.

Mas mesmo sendo o casamento algo muito longínquo de uma rameira e de um chulo assumirem os seus papéis perante o mundo, mesmo assim, há-que dar-lhe um aspecto imponente, e por isso é importante o local rico, os fatos luxuosos, as roupas caras e a maquilhagem, dias, semanas, meses de preparação, convites digníssimos, pessoas digníssimas. Sim, porque este homem e esta mulher, que se vão casar, são deuses, são Princípes e Princesas e, se vão f**** a noite toda, isso é lá com eles, mas não é por isso que estamos aqui. Nós estamos aqui, não só pela comida e bebida e porque seria chato dizer que não vínhamos (não tínhamos desculpa), mas para dar grandiosidade à grandiosidade inequívoca destes jovens que se vão dar no mais belo acto de amor. Que vão ser, a partir de agora, marido e mulher, pais dedicados, membros da comunidade. Enfim, partes da sociedade de grande valor e respeito! O casamento afinal não é sobre sexo, nunca foi, é sobre mostrar como somos importantes, valiosos uns para os outros, dignos e merecedores de respeito, até porque o sabemos dar, a quem merece, note-se bem.

O casamento é, antes de mais, um ritual de aceitação, tu agora fazes parte do grupo dos casados, és cá dos nossos. E vais ter os nossos vícios, os nossos problemas, as nossas tentações, os nossos dramas e adversidades. Nós compreendemos-te bem, porque já cá andamos há anos, mas não te preocupes, porque tudo vai correr bem!

Mas há um problema com esta perspectiva, antigamente até podia funcionar bem, porque o casamento era acima de tudo um contrato, no melhor dos casos fundado na obediência e respeito, e no Amor a um Deus que estava lá a velar por nós e a quem não podíamos desiludir nem por nada. Assim, quando dávamos uma beijoca no nosso amado, estávamos também a fazer um favorzinho a Deus e a cumprir as nossas obrigações perante a família e a sociedade, que era isso que esperava de nós.

Mas hoje em dia inventou-se uma nova moda e casamo-nos, namoramos, separamo-nos, tudo isso por amor. Ora, parece-me que ninguém sabe muito bem o que essa palavra significa: será paixão, uma forma intensa de amizade, respeito e carinho, preocupação, necessidade de estar com, não poder viver sem? Bem, mesmo sem saber o que é o amor, parece certo que é por ele que avaliamos tudo o que diga respeito a relações. E a única coisa certa que me parece haver em relação ao amor é que ele é uma emoção ou sentimento. Ora toda a gente sabe que emoções e sentimentos mudam. O amor muda, cresce e decresce, aparece e desaparece. Então como podemos jurar que vamos amar aquele ser para sempre? É que ele e nós mudamos...

Há coisas que não mudam, por exemplo, podemos amar para sempre um filho, um irmão, alguém de família. Mas não é esse tipo de amor que achamos que sustenta uma relação casadoira. O amor fogoso da paixão vai e vem, e normalmente muda de objecto, ou melhor, de sujeito amado.

Nesse sentido, moderno, de relação, o casamento é uma de três coisas: um sonho ou idealismo, uma aposta ou uma mentira. É uma tentativa de ocultar a imprevisibilidade e reino do coração substituindo-o com frases como "vou amar-te para sempre" e que têm o valor que todos conhecemos. A própria pessoa que a diz sente aquele sininho da consciência: «se calhar é mentira», mas tenta acreditar que é verdade, ou diz a si própria «ele precisa de ouvir isto», ou, pior ainda, acredita mesmo, porque ainda não viveu o suficiente.

Enfim, como podem ver sou um idealista em relação ao casamento!!!

E, para o provar, aqui vai mais uma melodia:

Só há um caso em que o casamento me parece, não uma fuga, mentira, demonstração de riqueza, espalhafato social: é quando as pessoas se amam verdadeiramente e querem amar-se durante toda a vida e mais além e o casamento é então o símbolo desse amor, dessa enorme vontade de estar, para todo o sempre um com o outro. E é um sentimento tão feliz, tão enorme, tão sem fim, que espalha felicidade a toda a volta. Então os familiares e amigos, os verdadeiros amigos, são contagiados por este prazer sem fim de estar um com o outro, e querem partilhar dele e celebrá-lo. Então vestem-se bem e aperaltam-se todos, passam dias a pensar na sorte que aqueles dois tiveram por se terem encontrado, bendizem-lhes a felicidade, congratulam-se por eles, e, no dia do casamento, aparecem, muito alegres e contentes, dispostos a acreditar, a dar-lhes o melhor, a rir e a brincar, sobretudo a celebrar um tão alegre acontecimento e sucessão de acontecimentos e desejam então, sinceramente, quase a chorar, as melhores felicidades, que fiquem juntos e felizes para sempre, tão bonitos que eles são!!!! E então é um dia lindíssimo e toda a gente dança como se voasse e ri como se fosse para sempre,

e, este sim,
é um casamento feliz
por amor
que dura para sempre
nem que seja
só por um dia, por um momento!!!

um sorriso, uma dádiva, um olhar
que vale por uma vida inteira!!!