sábado, 28 de junho de 2014

Mentir é uma traição

Mentir é uma traição...
...e a pior traição é a que fazemos a nós próprios
(pois a partir daí traímos tudo e todos, mesmo com boas intenções - deixamos de saber onde está a verdade).


No entanto, mentimos a nós próprios constantemente. Precisamos de mentiras para nos sentir seguros: o mundo imenso e intratavelmente complexo pode ser visto como um trampolim imenso no meio do desconhecido, onde cada salto (ação) não nos salva do infinito desconhecido que nos rodeia por todas as partes. E isto porque não sabemos de onde vimos, para onde vamos, nem sequer se aquilo que vivemos é "real"... Claro que também podemos ver ao contrário, todas estas dúvidas como exageros e o que vemos com os sentidos como o evidente de que podemos partir com confiança, até prova em contrário.
Mas esta mesmo possibilidade de ver de maneiras tão diferentes a mesma realidade, e a coerência de cada uma das visões (entre outras também coerentes), torna evidente que se trata de uma questão de fé... e não pode haver fé sem mentira ou, pelo menos, ilusão, pois ter fé é afirmar algo sem provas, é acreditar naquilo que, na realidade, se desconhece.

Mas, se a vida é essa vertigem onde nada se percebe, o que podemos dizer a nós próprios de verdadeiro? Se não nos quisermos "trair", não estaremos remetidos, ou ao silêncio, ou a um discurso meramente negativo: do que não se pode dizer?

Ou, pelo contrário, será que, ao assumir essa ignorância radical, esse "estar perdido", estamos a dar o primeiro passo em direção à liberdade? Pois "quem não sabe inventa", e quem não sabe nada tem de inventar tudo, tem de se inventar e inventar uma interpretação para o mundo que sabe que pode recriar de forma diferente a qualquer momento, pois nenhuma delas tem uma base preferível de todos os outros pontos de vista.


E ao darmos oportunidade ao inventar estamos também a abrir caminho a outras formas de justificar o que crio. Pois, se do ponto de vista conceptual só consigo especular sobre o que quer que seja, se não tenho provas de nada, se não pode ser o aço inflexível da lógica a tecer o modo como vejo o mundo, posso, e na realidade tenho de, procurar outra estratégia, mesmo que mais frágil.

Para além da razão usamos muitas vezes a emoção como base das nossas ações. Tanto a emoção como o pensamento se podem focar quer no meu interesse enquanto pessoa ou adotar um ponto de vista mais abrangente / transpessoal (aquilo a que Nagel chamou "the view from nowhere"). Ou seja, tanto podemos ver apenas o nosso ponto de vista como tentar ver o modo como as coisas são em si mesmas, independentemente de um ponto de vista particular. O sentimento, aplicado a essa forma de ver a realidade em si mesma, é o que chamo de sentimento estético e que está na base da arte e de toda a paixão pela realidade independentemente do que eu possa ou não ganhar com isso. Ou seja se gosto daquela rapariga pelo que ela me dá isso é o que se chama geralmente amor (ligado ao ciúme), se gosto daquela pessoa pelo que ela é, independentemente da relação que tenho com ela, isso já é uma forma de amor que está mais próxima da arte. É um gostar, uma admiração, um deslumbramento, desligado do interesse de ganho pessoal.

Esse tipo de reconhecimento da beleza pode servir para construir uma visão do mundo relativamente estável. Pois - tal como não consigo negar a sensação de azul apesar de ser impossível descrevê-la por palavras, ou explicar porque a vejo como azul (e não outra sensação) nem se ele é de facto azul (como eu sinto) ou não - também não posso negar que aquilo me parece belo apesar de não ser capaz de explicar nem o que é a beleza nem porque vejo aquele objeto como belo, nem se ele é de facto belo ou não. E no entanto tanto uma coisa como outra são uma evidência, uma evidência que escapa ao mundo das palavras e que, por isso mesmo, não consigo explicar nem a mim mesmo.

Há por isso um outro mundo, para além do que podemos descrever por palavras, e que vive dentro de nós de forma tão clara e distinta, tão evidente, como o mundo dos axiomas e suas deduções. Juntando todas essas "evidências", do que sentimos, do que percepcionamos, do que pensamos, já ficamos com uma visão mais clara e detalhada do mundo em que existimos. E talvez não seja assim tão difícil escolher um caminho apesar de não sermos capazes de explicar (nem a nós próprios) porque escolhemos ir por ali.

Também podemos, claro, usar uma perspetiva mais relacionada com o interesse do eu. Vou fazer tudo por esta pessoa enquanto ela me for fiel, por exemplo. Vou apoiar este clube mas não aquele. O problema é que esta perspetiva é bastante mais frágil: se a rapariga me trai o meu mundo cai por terra, se alguém me diz que o outro clube é tão bom ou melhor que o meu não o posso aceitar, apesar de uma parte de mim saber que é verdade! Ficamos muito dependentes do exterior e do contexto e mergulhados em contradições. Se, pelo contrário, amarmos as coisas por aquilo que vemos nelas em si mesmas, sem ligação com o que nos podem dar, não ficamos tão dependentes do contexto, a nossa visão é mais estável e muito mais clara ao longo da vida. Continuar a ter uma grande e verdadeira amizade por alguém que nunca mais vamos ver na vida é algo muito belo e confortante e faz sentido, por exemplo, como continuação de um grande amor ou amizade que, por qualquer razão, se esgotou.

Seja como for, quer se use uma perspetiva mais lúcida ou mais parcial, parece-me importante não mentirmos a nós próprios... mais fácil dizer do que fazer...

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