quarta-feira, 24 de setembro de 2014
fome pelo real
Poderia parecer estranho que algum dia chegasse a existir a religião, pois o amor que sentimos e a beleza que vemos já seriam, certamente, mais que suficientes para dirigir a nossa ação.
Parece-me que a razão pela qual isso não acontece deriva do modo como a nossa experiência depende do corpo / cérebro. Uma vez que temos sempre um ponto de vista a partir do eu (sentimos a nossa dor mas não a dos outros, percebemos facilmente o nosso valor, mas não o do resto) é difícil compreender, desse ponto de vista, porque haveria eu de fazer algo que não fosse em proveito próprio (por exemplo, evitar a dor de outros, se isso em nada me afeta).
A religião ajuda nesse sentido ao prometer que eu irei atingir algo (nirvana, paraíso, imortalidade, etc) se adotar outros pontos de vista para além do meu. O que torna as pessoas mais sensíveis, prestáveis e com comportamento mais homogéneo.
A religião tem ainda uma outra vantagem: à medida que vamos adotando cada vez mais pontos de vista, começamos a perceber o valor de muitas outras coisas para além de nós próprios. Ou seja, vivemos num mundo cada vez mais rico de valor, mais belo, onde vale mais a pena viver. Neste mundo já não existo apenas eu e o meu valor. Tu também és apaixonante e valeria a pena dar a minha vida para que tu pudesses viver a tua (um mundo duplamente mais valioso). E, à medida que vou caminhando, não és só tu, é também, ele, ela, nós. E, à medida que vou caminhando, não somos só nós: o mar é belo, o céu é belo, as pedras são belas... enfim, aproximamo-nos do ponto em que tudo é belo e nós também o somos, agora já não por sermos a única coisa que tem valor, mas por fazermos parte de um infinito a tantas vozes, cada uma com o seu incomparável valor e beleza.
A desvantagem é que, a partir do momento em que tudo se torna significativo, valioso, em si mesmo, a religião já não nos pode ajudar a encontrar ainda mais valor. Torna-se como o andarilho a quem quer aprender a dançar. A partir daqui só pode ajudar a restringir o valor seguindo agora o processo inverso: temos de evitar ver o ponto de vista dos outros, daqueles que não pertencem ao grupo (hereges, céticos, dogmáticos, iludidos, superficiais, etc).
Nem a arte nem a ciência, isoladamente, conseguem fazer o papel da religião em todos os casos. A arte não exige que saiamos da nossa concha (ponto de vista). A ciência não sugere a beleza, pelo contrário: certos cientistas vêm o mundo como um mecanismo desprovido de propósito e beleza, e ficam contentes por acharem que estão acima da maior parte da humanidade ao escaparem às ilusões do sentido e significado como algo que transcende a subjetividade.
No entanto penso que o homem do iluminismo, como da Vinci, para quem a ciência e a arte eram aspetos diferentes da mesma fome pelo real, pode atingir a mesma visão esplendorosa da realidade que algumas religiões proporcionam. Mas, para quem vê o mundo rodando à volta do seu eu, a religião parece continuar a ser talvez a única alternativa a um mundo de solidão. E para muitas outras pessoas também, uma vez que as principais alternativas oferecidas atualmente (hedonismo / consumismo, mecanicismo pseudo-científico, arte num mundo absurdo, etc) também não parecem oferecer grande esperança.
Parece-me que a razão pela qual isso não acontece deriva do modo como a nossa experiência depende do corpo / cérebro. Uma vez que temos sempre um ponto de vista a partir do eu (sentimos a nossa dor mas não a dos outros, percebemos facilmente o nosso valor, mas não o do resto) é difícil compreender, desse ponto de vista, porque haveria eu de fazer algo que não fosse em proveito próprio (por exemplo, evitar a dor de outros, se isso em nada me afeta).
A religião ajuda nesse sentido ao prometer que eu irei atingir algo (nirvana, paraíso, imortalidade, etc) se adotar outros pontos de vista para além do meu. O que torna as pessoas mais sensíveis, prestáveis e com comportamento mais homogéneo.
A religião tem ainda uma outra vantagem: à medida que vamos adotando cada vez mais pontos de vista, começamos a perceber o valor de muitas outras coisas para além de nós próprios. Ou seja, vivemos num mundo cada vez mais rico de valor, mais belo, onde vale mais a pena viver. Neste mundo já não existo apenas eu e o meu valor. Tu também és apaixonante e valeria a pena dar a minha vida para que tu pudesses viver a tua (um mundo duplamente mais valioso). E, à medida que vou caminhando, não és só tu, é também, ele, ela, nós. E, à medida que vou caminhando, não somos só nós: o mar é belo, o céu é belo, as pedras são belas... enfim, aproximamo-nos do ponto em que tudo é belo e nós também o somos, agora já não por sermos a única coisa que tem valor, mas por fazermos parte de um infinito a tantas vozes, cada uma com o seu incomparável valor e beleza.
A desvantagem é que, a partir do momento em que tudo se torna significativo, valioso, em si mesmo, a religião já não nos pode ajudar a encontrar ainda mais valor. Torna-se como o andarilho a quem quer aprender a dançar. A partir daqui só pode ajudar a restringir o valor seguindo agora o processo inverso: temos de evitar ver o ponto de vista dos outros, daqueles que não pertencem ao grupo (hereges, céticos, dogmáticos, iludidos, superficiais, etc).
Nem a arte nem a ciência, isoladamente, conseguem fazer o papel da religião em todos os casos. A arte não exige que saiamos da nossa concha (ponto de vista). A ciência não sugere a beleza, pelo contrário: certos cientistas vêm o mundo como um mecanismo desprovido de propósito e beleza, e ficam contentes por acharem que estão acima da maior parte da humanidade ao escaparem às ilusões do sentido e significado como algo que transcende a subjetividade.
No entanto penso que o homem do iluminismo, como da Vinci, para quem a ciência e a arte eram aspetos diferentes da mesma fome pelo real, pode atingir a mesma visão esplendorosa da realidade que algumas religiões proporcionam. Mas, para quem vê o mundo rodando à volta do seu eu, a religião parece continuar a ser talvez a única alternativa a um mundo de solidão. E para muitas outras pessoas também, uma vez que as principais alternativas oferecidas atualmente (hedonismo / consumismo, mecanicismo pseudo-científico, arte num mundo absurdo, etc) também não parecem oferecer grande esperança.
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