domingo, 21 de julho de 2013

... o individuo não vai permanecer, mas a dança vai continuar...

Milhares de milhões de planetas em milhares de milhões de galáxias e eu aqui com a minha dor de barriga. Aquele diz que disse que era assim que se fazia e se andar de cores trocadas ninguém vai gostar de mim... Quantos serão os satélites de Saturno onde há vulcões de água e onde a crusta é feita de gelo? E como será ver o Sol a partir dos anéis de Saturno? Corrupção, política e televisão... o meu dia-a-dia... com que se enchem os meus olhos?

O que escolhi retirar do mundo para encher a minha mente? Que música escolhi ouvir? Será a das esferas celestes ou da dor de barriga e «ai as minhas costas!» ...

A realidade oferece-nos várias coisas: podemos olhar para a esquerda ou direita, pensar naquela pessoa que me anda a tramar ou no computador para arranjar, no novo filme do momento...

Mas a realidade não se esgota no nosso minúsculo planeta, neste grão de areia invisível à escala cósmica. Toda a humanidade, toda a nossa história, tudo o que fizemos, é apenas uma vírgula no contexto cósmico. Então e eu? Serei a minúscula parte de uma minúscula vírgula?

Toda essa irrelevância me fazem sentir muito livre, afinal, o meu nascimento é um acontecimento de probabilidade zero ou perto disso. Eu podia não estar aqui, nunca ter nascido. «A minha vida toda», o mais provável era nunca se ter dado.

E o vizinho que continua a sacudir a toalha aqui para o terraço...

Podemos, durante o tempo que temos, neste momento / presente, escolher para que paisagem virar os olhos.

Até podemos escolher fechar os olhos.

Conheces alguém que ande de olhos fechados? Que não se aperceba do mundo que o/a rodeia? Que não queira saber? Que prefira não saber? Porque a realidade é cruel... ?

Olhemos então para o retrato cruel desta vida: a lei dos mais fortes, o acaso que tanto leva a vida do inocente como do culpado, a morte, ou derrota final, no fim de todos os esforços, de tudo quanto queremos alcançar... a injustiça em toda a parte...

Olhemos por exemplo para o ciclo das chuvas e das secas... dá-se vida a tantos durante o tempo de fartura, para logo a seguir os matar numa agonia lenta, à sede e à fome... E ainda falam em mundo maravilhoso? É maravilhoso ver milhares de milhões de animais (incluindo insectos) numa luta pela vida que os levam a comerem-se uns aos outros, a viver cheios de medo, a matar para viver, para depois encontrarem apenas a morte? É maravilhoso morrer à fome e à sede em números demasiado grandes para caberem na imaginação, em cada verão? É maravilhoso ficar a ver o seu corpo a ser desmembrado, comido ainda vivo por algum predador que também ele vai morrer?

Podemos dizer, quem se quiser focar nisto, que a realidade, longe de ser maravilhosa, é um ciclo de sofrimento, medo, tortura mesmo, um mero esperar pela inevitável morte e separação de tudo o que amamos e somos. E quem se quiser focar antes em incontáveis mundos e estrelas e galáxias, só terá, se quiser ser honesto, de multiplicar esse sofrimento, por incontáveis biliões de ocasiões.

Pois em todos esses mundos, cada indivíduo estará sujeito à morte, à corrupção, ao sofrimento, é como um gigantesco palco de sofrimentos, um palco de torturas onde se deitam os bichos, que se destroem, comem, lutam, sofrem, até ao suspiro final.

Mas até aqueles que sustentam esta visão da natureza como algo horrendo, uma gigantesca casa das torturas, reconhecem que não isso que parece à primeira vista. Mesmo que peguemos em espécies onde há muito sofrimento, como é o caso das sociedades da maior parte dos símios, devido à natureza hierárquica dentro das suas comunidades e às "guerras" entre comunidades, é verdade que, misturado com esse desprazer, ou com essa dor, existe também muito prazer. Por exemplo, numa guerra entre comunidades de símios pode haver um elemento que seja apanhado sozinho e seja agredido até não haver esperança de que sobreviva (isto é um acontecimento vulgar, não só entre os humanos) e deixado para morrer. Todo o processo (até à morte) pode durar umas horas, talvez até um dia ou dois. No entanto, se considerássemos um momento ao acaso na vida desse individuo, o mais provável seria encontrar-mo-lo a dormir, a comer, ou simplesmente a apreciar o sol ou a catar e a ser catado. Ou seja, em momentos de prazer. E isso porque a esmagadora maioria dos momentos da maior parte dos seres vivos (exceto em situação de escassez extrema) são de prazer, pelo menos de prazer relativo. Aliás, se assim não fosse, o suicídio seria provavelmente muito mais vulgar.

Se quisermos fazer a experiência basta olhar. O que vemos?

É verdade que há um sofrimento permanente se pensarmos que o individuo não vai permanecer. Mas a dança vai continuar.

E a dança é cheia de prazer. O sol que nos bate na pele. Sensações de toda a parte e a aventura de estar vivo. Cada momento, até ao último, cheio de mistérios: afinal o que é isto de viver, de ter sensações...? Quem sou eu...? não posso ser um nada absoluto, alguma coisa existe que sente, quer e pensa...

Apesar de não alcançarmos a resposta a estas questões é certo que, se nos abstrairmos do individuo, vendo tudo como uma espécie de mescla, então o veado vive através do tigre que o come, tal como nós vivemos através de tudo o que tem consciência neste mundo. A morte ou vida de cada indivíduo (incluindo a minha) tem então um papel muito menos central, tal como tudo o que nos acontece. Não é que deixem de ser importantes. Simplesmente tornam-se relativas: não é assim muito mais importante que eu morra atropelado, ao fim de imensas horas de sofrimento atroz, do que um miúdo na China ou noutro sítio qualquer morra atropelado nas mesmas circunstâncias. E faz um certo sentido, que eu, que matei tantos seres vivos para poder viver (por exemplo, comprando cereais, o que impede que muitos animais existam nessas terras de cultivo humano), morra também, como eles, cumprindo o ciclo da vida.

Mas apesar de nos desfocarmos do indivíduo, como se víssemos o mundo em que tudo está em tudo, e somos todos idênticos (ou quase) como eus, nem por isso o mundo perde detalhe. E isso só acontece porque o próprio conceito de identidade, de individualidade, não é inteiramente evidente. Como sei que "eu" sou o mesmo que há 5 minutos atrás, ou há 5 anos atrás? O que é que define esse "eu". Parece que estamos a impor esse conceito, que pode ser uma simplificação útil para a vida em sociedade, como algo existente em si mesmo.

Quando deixamos de considerar a individualidade como algo real a visão que temos do mundo não parece perder qualquer pormenor. Apenas consideramos os nomes que damos às pessoas e às coisas como labels úteis mas que não apontam para nada de real. São simplificações de uma realidade muito mais fluída onde o "eu" e o "tu" estão sempre em fluxo.

Olhemos agora para o mundo, com as suas secas, os seus meteoritos catastróficos, os seus eventos de extinção em massa, as suas doenças, as dores, a morte, o acaso e a cegueira /injustiça de tudo (a inexistência de recompensas para os bons e de castigos para os maus)... Mas agora, tudo isso sem o conceito de identidade. Como uma gigantesca massa que evolui onde a consciência desperta de imensos olhos, ouvidos e outros sensores dispersos pelo planeta. Acordando aqui e ali, desaparecendo ali e acolá, para logo voltar a emergir noutros sítios.

O que vêem esses olhos, o que sentem aqueles corações?

Eu diria: o Encontro, por vezes pequeno, minúsculo, mas que vai crescendo, mais e mais, até se tornar o Encontro com o Infinitamente Maravilhoso que está por toda a parte.

Este é um testemunho de um ser meramente mortal e muito, infinitamente, pequenino e irrelevante... Mas que vê em tudo o que o rodeia a marca do Infinito. (e até em si)

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