quinta-feira, 26 de março de 2015

O sofrimento...

O "santo" Agostinho tem um livro "De Beata Vita" (traduzindo: A Vida Feliz) que nunca pensei citar. Em geral sou daqueles que acha a Idade Média como a Idade das Trevas cujo principal fruto foi ter acabado e ter as sementes do Iluminismo.

Mas este texto é interessante, basicamente, do que me lembro das aulas, o argumento é que nós somos felizes (= latim beatos) se conseguimos aquilo que queremos. Ora praticamente tudo foge ao nosso poder, riqueza, saúde, amigos, a própria vida. Portanto, estamos condenados a ser apenas fugazmente felizes, pois, mesmo o que podemos alcançar é incerto e provavelmente findará antes de morrermos. Pelo menos é disto que me lembro (estas aulas foram há 20 anos).

Mas santo Agostinho diz que há algo que basta ser desejado para ser alcançado, não sei as palavras que usa mas é algo do género: querer pertencer a Deus.

Há toda uma teoria metafísica que me ultrapassa no cristianismo. Não sei, gostava de saber e tenho prazer por haver quem saiba. Mas eu de facto não sei se Deus existe e teve um filho etc. Portanto também não sei se essa premissa de santo Agostinho é verdadeira, pois talvez não haja um Deus que corresponda a esse meu desejo.

Mas há algo muito mais simples que se pode desejar e que se alcança pelo simples facto de se desejar: agir por amor. Não apenas nesta ou naquela acção, mas fazer de toda a nossa vida um gesto de amor. Em qualquer situação isto é possível não? Talvez seja preciso ralhar com a criança, matar o terrorista, ou a barata, ou até morrer por algo ou alguém. Mas há sempre um gesto de amor possível em qualquer circunstância, não será.

Se assim for, seria possível, caso fosse esse o nosso objetivo, ser feliz, porque para o concretizar, bastava querer. Agora é natural que eu esteja a descaracterizar o argumento do santo, pois, evidentemente que eu posso desejar muitas outras coisas que consigo enquanto estiver vivo: por exemplo, posso desejar respirar. O simples facto de eu conseguir realizar o que desejo não garante que eu vá ser feliz. Mais importante é saber se a realização desse desejo me vai fazer feliz.

Ora é aqui que fazer da vida um gesto de amor pode ter algum interesse: ele simultaneamente promove o contacto e a comunicação, o conhecimento, a amizade, a auto-estima, a auto-crítica, a (re)aprendizagem, a evolução... enfim...

Então, resta-nos perguntar porque há tanto sofrimento no mundo se é assim tão fácil evitá-lo?

Bem, uma das razões é que o sofrimento tem muitas causas, umas são físicas e não dependem da realização de desejos, podem ser dores, desequilíbrios hormonais, etc. Outras vezes o nosso sofrimento deriva do sofrimento de outros (empatia / compaixão, etc). Também pode derivar da compreender a nossa insignificância e da insignificância de tudo o que fazemos à escala cósmica, ou da nossa irremediável ignorância (a fé não anula a ignorância, pode é ser um substituto para o conhecimento no que diz respeito à acção).

Mas se é assim, compreende-se que a solução do St Agostinho não seja facilmente replicável: um Deus Todo Poderoso, capaz de amar de volta, de proteger e acompanhar como ninguém parece resolver todos aqueles problemas, da insignificância, ignorância, etc. Mesmo o sofrimento dos outros parece ficar então com uma solução simples: basta que eles também ofereçam a sua vida a Deus e plof... tudo resolvido.

Uma parte (talvez pequena) de mim gostava de acreditar nisso. Mas eu acho que o mundo não anda à minha volta. Se for atropelado não foi para ter uma lição de vida, foi simplesmente porque estava no sítio errado no momento errado. As coisas acontecem por uma causa, mas essa causa raramente sou eu, normalmente são muitas outras coisas, como o condutor ter bebido um copo a mais, ou um rajada de vento ter empurrado a minha bicicleta mais para o meio da estrada e os hábitos de condução em portugal que incluem fazer razias aos ciclistas... Não tem nada a ver comigo. Haverá um Ser Todo Poderoso sempre a velar por mim? A ver tudo o que faço? A desviar os carros e as rajadas de vento caso eu me porte bem? O que eu vejo à minha volta não me leva a pensar isso. Eu vejo um mundo maravilhoso onde eu sou apenas mais uma pequena maravilha, muito pequena mesmo. Não me acho mais belo que o que me rodeia. Nem com mais valor. Sou simplesmente uma gota no oceano cósmico, na cosmic soup.

Mas precisamente essa minha participação na infinita beleza, faz da minha vida uma beata vita. Posso sofrer, e tenho sofrido, quando vou à casa de banho e as coisas não correm bem, quando os meus amigos sofrem e eu com eles, quando vejo como as coisas poderiam ser melhores. Mas, no centro, sou absolutamente feliz. A minha vida é mesmo um gesto de amor, e talvez o mesmo aconteça com a maior parte ou talvez até todos nós. Só que, quando chega à luz do dia, vem muito distorcido pela incompreensão e medo. Sei que morrerei em breve (nenhum ser humano até hoje viveu mais do que um misero século e uns trocados). Mas sinto-me feliz porque continuarei a participar de toda esta beleza tal como participei desde todo o sempre. O universo teve-me assim que nasceu, como possibilidade. Agora, improbabilidade das improbabilidades, passei de possibilidade a actualidade. Mas todas as minhas ideias, sensações e emoções ecoam e ecoavam e ecoarão já por aí, em milhares de mentes, em biliões de cérebros. É impossível que essas coisas que fazem o meu ser morram, tal como não nasceram com este corpo. 2+2 são 4 aqui e na outra ponta da Galáxia. E seriam 4 mesmo na hipótese (imensamente mais provável) de nunca ter existido este Pedro Fonseca em toda a história do universo.

E por tudo isso sou feliz, sou imensamente feliz. Oh Santo. O que eu gostaria de poder conversar contigo sobre o que afinal permite e é a chave da Beata Vita.

PS - na verdade o que eu queria dizer era isto: do que eu vejo o sofrimento psíquico vem sobretudo de querermos coisas que não nos fazem felizes. Associamos a felicidade ao prazer. Sentimos prazer quando temos um carro e pensamos que a felicidade vem de ter carros bons. Sentimos prazer quando falamos com alguém que nos ama e compreende e achamos que somos felizes se tivermos aquela pessoa ao nosso lado toda a nossa vida. Mas, no que consigo perceber, o caminho que leva à felicidade é algo quase totalmente diferente do caminho que leva aos prazeres. A felicidade é quase sempre em parte desprendimento. É um cuidar e amar solto. Enquanto que o prazer normalmente se consegue pelo apego, pela conquista e pela luta. A felicidade é a completude etérea o prazer é a conquista que se faz notar.

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